Não sei se já tentaram acompanhar as movimentações no “mercado de terroristas”. É um hobby algo estranho, concedo, mas um excelente exercício às capacidades interpretativas e até de memória.
Antigamente, acompanhava as movimentações no mundo do futebol, tentava perceber qual dos 30 nomes anunciados diariamente para o Benfica vinha, de facto, embora este divertimento acabou por me aborrecer. No fim chegava sempre apenas um refugo qualquer do Atlético de Madrid, e a coisa perdeu a piada.
Já no “mercado de terroristas” a complexidade é outra e as movimentações difusas. É como jogar xadrez contra um robot que muda as regras a cada cinco minutos. Pensas que estás a perceber e, de repente, zás, começas do princípio.
O caso mais famoso no mundo terrorista será o dos afegãos, o clássico dos Mujahideen: um povo bravo classificado como “combatentes da liberdade” no final do século XX e que, no início do século XXI, passou a terrorista.
À partida pode ser estranha esta mudança com o virar do milénio, mas não: até é simples de perceber. Na década de 80 do século passado, os afegãos combatiam a invasão russa, logo, eram classificados pelos americanos como freedom fighters. Já em 2001, foram os próprios americanos a invadir o Afeganistão e, obviamente, a classificar os invadidos como terroristas.
Nada mais simples e lógico. Depois da derrota dos talibãs – lembrem-se, terroristas afegãos –, seguiram-se 20 anos de presença americana na região e dois presidentes escolhidos a dedo. Em 2021 os talibãs, agora novamente fora da lista de terroristas, negociaram a retirada americana e assumiram as rédeas do país. E quem quiser que feche a porta.
O cartão de membro dos Talibãs já deve permitir, por esta altura, a resposta “é complicado” no menu das actividades terroristas.
A polémica mais recente do mercado adensou-se ontem, em Madrid, na cimeira da NATO. A Turquia de Erdogan exigia que a Suécia e a Finlândia deportassem membros do PKK (Kurdistan Workers Party) e que deixassem de dar asilo, ou qualquer tipo de apoio a esta (e outras organizações) curdas.
No fundo, o que Erdogan queria era carta branca para perseguir os curdos até onde bem lhe apetecesse dentro do espaço europeu.
O PKK é a parte visível de um conflito com mais de 40 anos entre curdos e turcos pela separação (ou autonomia) de um território no sudeste da Turquia, junto à fronteira com a Síria e Iraque, onde se concentra a maioria curda.
Logicamente, o conflito já tem algumas chacinas, de parte a parte, e o PKK surge classificado como uma organização terrorista pela Turquia, Estados Unidos, Reino Unido e maior parte dos países da União Europeia. Ou seja, por todos os membros da NATO.
Note-se aqui a suprema ironia nesta classificação pelas potências ocidentais: os curdos são terroristas quando querem criar fronteiras onde, de facto, vivem. Os kosovares tinham direito a um país porque eram a maioria no sul da Sérvia. Os russófonos do Donbass são nazis e, por isso, não podem pedir autonomia. Os chechenos tinham direito à sua terra, no início do presente século, porque estavam lá há 200 anos – hoje, porém, em princípio já não, porque combatem ao lado dos russos na Ucrânia.
Como disse ali em cima, é um mercado muito volátil e a interpretação mostra-se difícil. Quero sempre torcer pelos bons, mas, neste caso, fico baralhado no meio das histórias. Viram mais que um argumento do Hitchcock. Mas recomendo para as férias, é mais entusiasmante do que o sudoku.
Quando os EUA pensavam que Bashar Al-Assad ia cair na guerra civil da Síria, meteram-se ao barulho e apoiaram as forças curdas que combatiam o regime. A principal frente era mantida pelo YPG (People Protection Units), uma unidade curda, conhecida por ser a extensão do PKK em território sírio.
Foram eles – a solo ou integrados nas forças democráticas sírias (SDF) – que combateram Al-Assad e o ISIS. Como de costume, os curdos foram à frente e deram o corpo ao manifesto para combater uma ameaça que era global: o Estado Islâmico.
Ou seja, os Estados Unidos, através da NATO, consideravam o PKK uma organização terrorista e, em simultâneo, aliavam-se ao “PKK da Síria” para terem o trabalhinho sujo feito. Erdogan não gostou, mas comeu sem calar. No fim, como de costume, os curdos foram abandonados à sua sorte contra nova chacina turca que aproveitou a guerra civil síria para resolver assuntos internos.
Portanto, os curdos conseguiram ser terroristas e combatentes da liberdade no mesmo dia. E abandonados no seguinte. Não é para todos.
Agora, em Madrid, Erdogan conseguiu que a Suécia e a Finlândia não só considerassem o PKK como uma organização terrorista como os obrigou a terminar o embargo de armas para a Turquia. A Suécia é um dos maiores fabricantes de armas a nível europeu e a NATO aludiu a essa mais-valia com a entrada do novo membro.
A partir de agora, não só acaba o asilo para os curdos como, sempre que Erdogan quiser, a Suécia tem de lhe fornecer armas, ao abrigo dos protocolos da Aliança, para que ele possa arrasar mais umas vilas no Curdistão.
De uma assentada, a Suécia cria um problema interno – o óbvio descontentamento da enorme comunidade curda – e passa a contribuir directamente para mais uma guerra. Cessa o apoio à maior população do Mundo sem território (30 milhões) e passa a fornecer armas a um país não-democrático.
Nada mau para uma terça-feira de manhã nos escritórios da NATO.
Só não vislumbra a paz, aqui, quem estiver provido de “óbvia” má vontade.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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