EDITORIAL

Da pandemia aos incêndios: o mesmo país, a mesma gestão política, o mesmo bode expiatório, o mesmo desastre

boy singing on microphone with pop filter

por Pedro Almeida Vieira // Julho 10, 2022


Categoria: Opinião

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Fossem os nossos políticos tão exímios em implementar políticas públicas eficazes como em encontrar bodes expiatórios, e Portugal seria um país exemplar. Assim não sendo, espera-nos o inferno. Ontem, como hoje; agora como no futuro, se não atalharmos caminho.

Sabemos hoje como foram os dois últimos anos. Há duas semanas, o próprio presidente do Tribunal Constitucional (TC) elencava que, a pretexto da pandemia, Portugal conheceu “15 declarações do estado de emergência, 11 declarações de situação de alerta, 11 declarações de situação de calamidade, duas declarações de situação de calamidade, contingência e alerta, três declarações de situação de contingência e alerta e três declarações de situação de contingência”.

silhouette of man standing on grass field during night time

Tamanha “barbaridade constitucional” (as aspas são minhas), que até surpreendeu o responsável máximo pela defesa dos nossos direitos constitucionais, não teve como escopo principal criar (ou contribuir para criar) condições para se ser mais eficaz e eficiente nas medidas de controlo da covid-19, de uma forma equilibrada dentro das políticas de Saúde Pública.

Foram sobretudo aplicadas pensando em dois objectivos. O primeiro, o próprio presidente do TC refere: fomentar o medo.

Tem lógica, foi assim mesmo, e sabemos. Alimentando o medo (de morte, neste caso), os políticos invocaram para si o papel protector do Estado perante uma agressão externa sobre-humana, retirando de si a responsabilidade de solucionar o problema, e ademais justificando a possibilidade de exigirem, como exigiram, aos seus cidadãos uma subordinação às suas ordens – e levá-los a que eles mansamente as aceitassem e controlassem os “insurrectos”.

O segundo objectivo foi criar uma conjuntura no ambiente social – o medo colectivo instigado pelos interesses dos media mainstream – que lhe garantisse um resultado do tipo win-win.

Ou seja, se por circunstâncias diversas, e exteriores ao Governo, a pandemia amainasse – por exemplo, pela natural evolução para uma fase endémica, como a que vivemos –, a “vitória” teria um dono. Ainda mais gloriosa porque a imprensa garantiria o selo.

red and white UNKs restaurant

Caso o Governo falhasse – como falhou no controlo da pandemia, em determinada fase (Janeiro e Fevereiro de 2021) e sobretudo na gestão do Sistema Nacional de Saúde (como se constatou ao longo do tempo, e mais ainda agora, para cúmplice silêncio da imprensa mainstream –, nunca se lhes poderia, supostamente, assacar culpas.

Com efeito, como assacar responsabilidades a um Governo que, parafraseando o presidente do TC, decretou “15 declarações do estado de emergência, 11 declarações de situação de alerta, 11 declarações de situação de calamidade, duas declarações de situação de calamidade, contingência e alerta, três declarações de situação de contingência e alerta e três declarações de situação de contingência”?

Não estiveram eles, o Governo, a trabalhar incansavelmente, sempre a aparecer, sempre a parecer que faziam coisas? Como se pode, nestas circunstâncias, responsabilizar o Governo português pelo imparável excesso de mortes nos últimos 53 meses? Se tal houve foi porque o “monstro” da pandemia não permitiu mais. Era inevitável, e mais: até seria pior se não fossem as tais 15 declarações do estado de emergência, & etc.

Para que esta narrativa fosse politicamente bem-sucedida – como foi durante a pandemia –, o controlo da informação mostrou-se essencial. O Governo esteve sempre na crista da onda mediática, a legislar – esteve e está na moda as Resoluções de Conselho de Ministros, que, do ponto de vista legislativo, valem quase nada –, a dar ordens, a comentar, a inundar a comunicação social de suposta informação (muita dela filtrada e manipulada, porque nunca se divulgam dados em bruto para evitar surpresas).

Misture-se isto com um presidente da República, um primeiro-ministro, uma ministra e directores-gerais sem independência partidária a debitarem opiniões e a fazerem comentários sobre uma estratégia de combate a uma calamidade, e nunca ninguém poderá apontar-lhes que são eles uma calamidade – que foram eles a contribuir para a calamidade.

silhouette of trees on smoke covered forest

Esta estratégia de diabolizar ameaças, hiperbolizando problemas – como sucedeu com a covid-19 –, não é, na verdade, inédita. Tal sucedeu sempre nos incêndios rurais. Em 2003 foi assim, quando arderam mais de 400 mil hectares; em 2005 também, quando arderam 350 mil hectares; em 2017, idem, quando arderam 540 mil hectares e morreram mais de 100 pessoas em dois eventos catastróficos, em Junho e em Outubro.

Nada disto foi culpa de qualquer Governo, claro! Foi tudo culpa de um “monstro” externo – o fogo, “primo” mais antigo do SARS-CoV-2 como bode expiatório – nunca das políticas públicas desastrosas.

Nada será, portanto, culpa do actual Governo se os próximos dias transformarem o país em chamas. Já vi esse passa-culpas muitas vezes, já escrevi muito sobre isso: mais de 400 páginas há 15 anos, com Portugal: o vermelho e o negro.

Com a pandemia ainda morna, vejo-me assim perante um déjà vu, agora que se está na iminência de mais um desastre num quente e seco no Verão, como se fosse anormal tempo quente e seco no Verão.

Tenho para mim – que acompanho essa temática, na função de jornalista, desde os anos 90 – como certo que as alterações climáticas são uma evidência, independentemente de alguns desconfiarem que não são de origem humana (erradamente, na minha opinião). Porém, estou muito longe de aceitar que, a pretexto de uns dias mais quentes de Verão – e é bom recordar que no ano passado Julho foi “fresco” –, se venha, logo, invocar as alterações climáticas com o objectivo de fomentar, desde logo, um “clima” de imprevisibilidade nas consequências.

Portugal é o único país da Europa mediterrânica que, desde 1980, aumentou a sua área ardida em termos absolutos. Desde o início do presente século, só dois países registaram anos com uma área ardida superior a 1% do respectivo território: Grécia e Portugal. Mas enquanto a Grécia viu isso suceder apenas duas vezes (2000 e 2007; um pouco menos de 2% de área afectada), tal já sucedeu por 17 vezes em Portugal, das quais 10 vezes no presente século, com um pico de 6% em 2017.

Variação da área ardida por ano nos países mediterrânicos europeus (JRC, 2010-2019)

Foi isto culpa das alterações climáticas? Foi, se se considerar que seria lícito armarmo-nos as Forças Armadas de arco e flecha em pleno século XXI para enfrentarmos uma eventual invasão estrangeira…

Ou foi a culpa será antes das políticas de desinvestimento agrícola? E das políticas de promoção da desertificação do interior (porque o interior não dá votos)? E das erradas estratégias florestais que não se adaptaram face às alterações climáticas e as mudanças sociais-culturais do mundo rural? E da criminosa manutenção de um modelo de prevenção e de combate aos incêndios florestais assente em pseudo-voluntarismo em detrimento de um modelo profissional holístico (gestão, prevenção e combate) e responsável?

Nada disto conta? É tudo culpa de um bode expiatório, de uma força incontrolável, sobre-humana? Culpa de todos em geral, e nunca do Governo em particular, que pode livremente puxar-nos as orelhas, porque por detrás de cada português estará um transmissor de SARS-CoV-2 como está também um incendiário?

Suspiro, por isso, ao ver agora a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil dizer que estamos perante uma “meteorologia quase inédita” (confesso que não sei o que é um “quase” ineditismo), ao ver o Governo a decretar mais um “estado de contingência”, ao ver o Presidente da República a dissertar sobre fases dos incêndios como se estivesse com comentários no final dos jogos de futebol da Selecção Nacional, e ao ver o reitor do Santuário de Fátima a apelar para que se reze pelo fim dos fogos.

Este país está condenado.

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