VISTO DE FORA

Há quanto tempo não muda de cuecas?

person holding camera lens

por Tiago Franco // Julho 11, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


A frase “hoje foram cancelados X voos” entrou nas redacções, em força, para substituir a outra, já mais gasta por esta altura: “o número de infectados por covid-19 subiu para Y”.

Entendo que os canais informativos, especialmente os que precisam de 24 horas diárias de assunto, vão atrás de qualquer gota de sangue. Ainda assim, existem temas que se esgotam rapidamente. Aos habituais directos dos “teatros de operações”, que saem sempre muito bem nesta época do ano, juntou-se a azáfama dos aeroportos e das filas intermináveis.

Nunca percebi o valor informativo de um directo para observar um regimento de bombeiros em acção, e ainda tenho mais dificuldade em perceber o que ganhamos nós, espectadores, com aquele simulacro informativo, diário, em directo da Portela.

Interessa a 99,9% da população saber o número de voos cancelados hoje? Por acaso iam voar?  Quão deprimente é ver uma jornalista a chatear passageiros, que desesperam em filas de quatro horas, com perguntas do género: “acha que se vai resolver?”

Se nem os funcionários do balcão de cada companhia aérea sabem para onde a coisa vai, quanto mais os desgraçados que andam a contar os dias de férias que sobram depois desta empreitada.

Hoje ouvi uma jornalista, julgo que da CNN, a perguntar a uma passageira se tinha sido informada do estado das coisas. É mais ou menos o mesmo que perguntar a um urso polar se já viu gelo. Há alguém neste planeta, mesmo o monge tibetano mais recolhido, que não saiba de cor e salteado quantos aviões não saíram da Portela? Haverá algum pastor numa aldeia dos Himalaias que não saiba por esta hora que, no hub da TAP, a maior parte dos voos cancelados são, curiosamente, dessa mesma TAP?

orange and grey passenger seats

Normalmente, quando fazem esta contagem de voos e nos dizem quantos são da TAP, esquecem-se de dizer que no Charles de Gaulle a companhia com mais cancelamentos é a Air France, em Barajas a Iberia, em Heathrow a British Airways, em Frankfurt a Lufthansa e em Arlanda a SAS. É uma informação que, a meu ver, fazia falta para se completar o ramalhete de 10 minutos televisivos a explicar que a água molha. O interesse disto seria zero, ainda assim, mas pelo menos os espectadores percebiam que Lisboa sofre do mesmíssimo problema de qualquer aeroporto europeu (ou mundial) com muito tráfego neste período pós-pandemia. E sempre se enchiam mais uns chouriços.

Depois de percebermos que o caos no mundo da aviação se generalizou é que poderíamos começar uma discussão interessante e, até quem sabe, responder à pergunta do “acha que isto se vai resolver?”

Por exemplo, em vez de directos razoavelmente deprimentes, ou perguntas para analfabetos, dirigidas a passageiros que já têm problemas maiores para resolver, poderiam as televisões abrir espaços de debate para debate sobre o problema. Bem sei que ninguém me perguntou nada, mas este mau tempo não me deixa ir para a praia. Um homem tem que ocupar o tempo.

Se convidassem membros do Governo, especialistas da aviação (companhias aéreas, gestores dos aeroportos, etc.) e alguns economistas, só para termos momentos de filosofia, todos bem sentadinhos num painel de debate, talvez nos conseguissem explicar como é que chegámos aqui.

white airliner on runway

Por exemplo, se me deixassem fazer uma pergunta nesse painel, seria esta: “como é que a Segurança Social pagou às empresas para não despedirem os trabalhadores e, mesmo assim, chegamos ao período pós-pandémico com uma imensa falta de trabalhadores?”

Dados do Governo português, em Maio de 2020, confirmavam o apoio a cerca de 40 mil empresas, num total de 600 mil trabalhadores. Imagino que o número tenha aumentado no ano que se seguiu.

Porque, como diria o nosso António, vam’lá a ver, esta seria a teoria. Os governos decretaram que nada mexia, aviões incluídos, porque o Mundo estava perto do apocalipse e, em princípio íamos todos morrer. Mesmo ao fim de um ano e números semelhantes aos da pneumonia (mortes), os governos europeus não abrandaram. Tudo quieto, todos em casa e os aviões no chão. Pelo esforço de todos, fomos batendo palmas e, aqui e ali, saltava um arco-íris com a promessa que tudo iria ficar bem.

Uma das formas encontrada para ficar tudo bem foi, no caso português, aumentar a dívida pública e financiar as empresas para que mantivessem os seus trabalhadores sem produção. No caso da aviação, essa realidade era mais do que óbvia, porque, todos percebemos, as ligações estavam praticamente congeladas. Eu confesso que achei boa ideia na altura e o raciocínio também era simples: se por decisão dos Governos não podíamos trabalhar, seria sua obrigação social (dos Governos) garantir o sustento de cada família, fosse como fosse. Com ou sem engenharia financeira.

Claro que todos percebíamos que o endividamento viria como factura algures no tempo, mas, em princípio, os postos de trabalho estariam assegurados.

Depois de dois anos com os movimentos condicionados, os europeus quiseram sair de casa e voltar a viajar. E bem. Porém, agora, de Norte a Sul, Este a Oeste, vão chegando relatos de aeroportos absolutamente entupidos e voos cancelados. Em todos a mesma justificação: falta de pessoal.

E é aqui que começa a minha curiosidade. Falta de pessoal, porquê? Os empregos não deveriam estar garantidos pelo erário público para que “tudo ficasse bem” depois da pandemia? [Nunca sei se devo dizer “depois da pandemia”. Certamente estarei a ofender algum Antunes que me possa ler]

Vejo duas hipóteses para o caos actual. A primeira: as empresas usaram o dinheiro para garantir lucros e, pelo caminho, aproveitaram para fazer os despedimentos à mesma – ou restruturações, como lhes chamam os gestores premiados. A segunda, menos rebuscada: o pessoal do sector foi para outras áreas profissionais que não tenham sido tão afectadas. Ou ainda, no caso do pessoal mais especializado (manutenção, pilotos, etc.), aproveitaram para mudar de empregador e fugiram para as Arábias (Emirates), Inglaterra (EasyJet) ou qualquer outro destino onde não lhes cortem os salários em 45%.

Provavelmente, a junção das duas resultou nisto. Neste caos, nesta falta de pessoal um pouco por todo o lado. A isto juntam-se as greves dos trabalhadores que sobraram. Com a pressão existente sobre as empresas e os atrasos que prometem comprometer o Verão, é natural que os trabalhadores façam valer os seus direitos e tentem recuperar o que perderam durante o confinamento. É a lei do mercado a funcionar a favor de quem trabalha. Não pode servir só para benefício do patronato e dos especuladores, portanto, há que aguentar.

Em todo o caso, se pouco se pode fazer se um trabalhador mudar de empregador, já sobre uma empresa despedir quando todos lhe pagamos para que não o faca, há mais qualquer coisa a fazer. Nomeadamente, perguntas.

Há alguém que ande a perguntar ao pessoal da aviação que recebeu as ajudas do lay-off, para onde foram os trabalhadores? Eu tenho alguma curiosidade em saber. Com 10% do tempo diário gasto em directos inúteis no aeroporto de Lisboa, organizava-se um debate para esclarecimento.

Enfim, quanto a vocês não sei, mas, pessoalmente, não estou muito interessado em saber há quantos dias o senhor que vai para o Recife não muda de cuecas. Já descobrir para onde foram os funcionários da aviação, especialmente aqueles que estavam protegidos pela Seguranca Social, dava-me algum jeito. A mim e à senhora da CNN que pergunta todos os dias se achamos que a coisa se vai resolver.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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