2022: há um silenciado e atroz gerontocídio em Portugal

Desde Janeiro, já morreu um em cada 10 idosos com mais de 85 anos

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por Pedro Almeida Vieira // Julho 13, 2022


Categoria: Exame

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Nada tem a ver com a onda de calor em curso. No passado domingo, a mortalidade acumulada nos mais idosos (acima dos 85 anos) desde Janeiro deste ano ultrapassou os atrozes valores de 2021, quando então se bateram recordes de óbitos em Janeiro e Fevereiro. Mas, ao contrário do que sucedeu em 2021, o morticínio nos mais velhos está a acontecer na Primavera e no Verão de forma persistente e silenciosa, contrariando aquilo que seria expectável. E tem sido um evento silenciado. Na verdade, não está ser apenas um morticínio; está a ser um gerontocídio. O PÁGINA UM apresenta uma análise detalhada daquilo que está a suceder, a exigir investigação, que pode ser judicial.


Gerontocídio – a palavra existe no léxico, embora seja pouco usada. Mas sendo pouco ou nada usual ouvi-la e vê-la escrita, tem agora andado a pairar por todo o lado no nosso país, de norte a sul, de este a oeste, apesar das autoridades de Saúde, e particularmente o Governo, nem sequer queiram proferir um qualquer eufemístico sinónimo. Nada. Silêncio. Um atroz silêncio: é esta a reacção de um Estado democrático perante uma mortandade sem precedente atinge níveis inauditos numa franja que já deu muito ao país: os super-idosos, os maiores de 85 anos.

De acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM, incluindo tratamento estatístico, aos dados disponíveis do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), os óbitos acumulados desde 1 de Janeiro deste ano neste grupo etário ultrapassaram, no passado domingo (dia 10 de Julho), os números já colossais de 2021, que incluíram Janeiro e Fevereiro, no auge da pandemia da covid-19.

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Com os números provisórios até 12 de Julho, terão já morrido este ano um total de 30.648 pessoas com mais de 85 anos, o que representa quase 10% dos idosos daquela faixa etária, que nos últimos anos estava em contínuo crescimento. De acordo com as estimativas do Instituto Nacional de Estatística viviam em Portugal 328 mil pessoas com mais de 85 anos em 2020, sendo que, naquele ano, mais de 56 mil tinham apagado oito dezenas e meia de velas.

Este grupo etário esteve em contínuo crescimento nas últimas décadas, fruto das melhorias nos cuidados médicos, tendo duplicado mesmo o seu número entre 2004 (quando então viviam apenas cerca de 16 mil pessoas com mais de 85 anos) e 2020. Esse crescimento será quebrado, certamente agora, com o excesso de óbitos em 2021 e 2022.

O valor da mortalidade acumulada dos mais idosos em 2022 excede, por agora, em pouco menos de uma centena (97) os números do ano passado (30.551 óbitos). Encontram-se também substancialmente acima do primeiro ano da pandemia (27,866 óbitos) e são muitíssimo superiores ao período pré-pandemia (25.493 óbitos em média entre 2015 e 2019).

Recorde-se que o ano passado foi particularmente mortífero para os mais idosos. Nos dois primeiros meses do ano passado, a mortalidade total atingiu patamares inéditos: em Janeiro morreram 19.649 pessoas e em Fevereiro 12.784. Destas, 46% (14.809) eram idosos com idade igual ou superior a 85 anos.

Apesar disso, este ano a situação de Saúde Pública dos mais idosos está a assumir contornos ainda mais catastróficos, porque o morticínio não se iniciou nos meses de Inverno – associado a doenças mais letais neste grupo etário –, tendo-se sim intensificado, de forma espantosa e imparável, sobretudo a partir de Março.

Não se registou assim a habitual diminuição dos óbitos ao longo da Primavera e Verão; pelo contrário. Neste momento, os níveis de mortalidade nesta faixa etária estão próximos dos valores de Inverno, e com um excesso significativo face aos anos anteriores e sobretudo aos períodos homólogos pré-pandemia.

O início deste ano até aparentava vir a ser “ameno” para os mais idosos, após a pandemia ter causado um excesso de mortalidade sem precedentes. De facto, o último Janeiro teve uma mortalidade diária para os maiores de 85 anos até ligeiramente abaixo da média do período pré-pandemia: 167 óbitos vs. 174. O mês de Fevereiro esteve já um pouco acima, mas, mesmo assim, até ao dia 25 daquele mês tinham morrido menos 4.828 idosos desta faixa etária do que em igual período de 2021.

Aquilo que sucedeu depois mostra-se ainda inexplicável, pela sua dimensão e persistência, e por mais especulações que as autoridades de Saúde façam, enquanto se recusam a investigar ou impedem ostensivamente que haja investigações independentes. Este ano, entre Março e 12 de Julho, morreram 20.647 idosos com mais de 85 anos, um valor que excede em 4.901 os óbitos registados em 2021, em 2.227 os contabilizados em 2020 (que inclui o início da pandemia), e em 5.004 os que se registaram em média no período entre 2015 e 2019. Em relação à fase pré-pandemia, os óbitos neste grupo etário incrementaram em 32% no período do ano geralmente pouco mortífero.

Evolução do diferencial de óbitos acumulados entre 2022 e 2021 até 12 de Julho no grupo etário dos maiores de 85 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

De facto, o perfil da mortalidade deste ano para os mais idosos é completamente atípica. Desde Março, a mortalidade diária dos maiores de 85 anos tem variado entre uma média diária de 149 óbitos em Julho (nos 12 primeiros dias) e os 160 em Março. A média diária no período pré-pandemia (2015-2019) situa-se, para este intervalo de tempo, entre os 99 óbitos em Julho e os 135 em Março.

Ou seja, desde Junho observa-se um excesso de mortalidade neste grupo etário a rondar 50 óbitos em cada dia. Em dois meses são cerca de três mil mortes a mais. Não há explicação oficial, justificada por estudos técnicos, para estes números.

Esta hecatombe ainda assume pior intensidade, por duas razões: por um lado, nenhum outro grupo etário apresenta este perfil de mortalidade ao longo deste ano; por outro lado, o morticínio dos últimos meses sucede a um longo e (quase) contínuo período de excesso de mortalidade desde o surgimento da pandemia. Ademais, praticamente todo este grupo populacional se encontra com imunidade vacinal contra a covid-19 com três ou quatro doses.

Mortalidade média diária por mês dos maiores de 85 anos no período 2015-2019 (média), 2020, 2021 e 2022 (Julho até dia 12). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

Com efeito, analisando todos os grupos etários do SICO, aqueles que são subsequentes aos maiores de 85 anos até estão em situação muito mais favorável relativamente ao ano passado. Apesar de os valores ainda estarem algo acima da média pré-pandemia, se comparamos a mortalidade acumulada até 12 de Julho deste ano com o período homólogo do ano passado para o grupo etário dos 75 aos 84 anos, observa-se até um decréscimo de 1.504 óbitos. Para o grupos dos 65 aos 74 anos a redução é de 839.

A relativa redução na mortalidade entre os 65 aos 84 anos justifica, assim, que o total de óbitos na população portuguesa até 12 de Julho de 2022 ainda seja bastante inferior ao ano passado: 67.939 óbitos contra 70.677, ou seja, menos 2.728.

Porém, esse mesmo diferencial, confirma ainda mais que o problema se concentra em exclusivo nos mais idosos, embora seja questão menos mediatizável por atingirem pessoas que já vivem acima da esperança média de vida. Em todo o caso, fica patente que o suposto “efeito rejuvenescimento” – devido à morte dos mais “fracos” ao longo da pandemia – não foi assim suficiente para estancar um “inesgotável morticínio”.

Comparação entre a mortalidade acumulada (até 12 de Julho) em 2020 e de 2021 e da média pré-covid (2015-2019) por grupo etário dos mais idosos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

A constatação de se estar perante um silencioso e silenciado problema em exclusivo para os mais idosos ainda se evidencia mais numa análise aos grupos etários das pessoas com menos de 65 anos – onde, felizmente, a mortalidade em qualquer caso é muito inferior. No grupo dos 55 aos 64 anos – em que a mortalidade em 2022 ainda está acima do período pré-pandemia –, no presente ano contabilizam-se menos 320 óbitos do que no ano passado.

Para os menores de 55 anos, o ano de 2022 está dentro de valores considerados normais, incluindo os anos anteriores à pandemia. Na verdade, durante 2020 e 2021, a mortalidade nos menores de 55 anos foi mesmo geralmente mais baixa do que no período pré-pandemia (2015-2019), com uma excepção (pouco relevante do ponto de vista estatístico) no grupo etários dos 15 aos 24 anos.

No caso dos menores de 15 anos, ao longo da pandemia a mortalidade – já de si muito reduzida em situações normais – esteve sempre mais baixa. Na verdade, a taxa de mortalidade infantil desceu mesmo nos dois primeiros anos da pandemia, e o ligeiro crescimento deste ano face a 2021 não é (ainda) preocupante numa perspectiva de Saúde Pública.

Comparação entre a mortalidade acumulada (até 12 de Julho) em 2020 e de 2021 e da média pré-covid (2015-2019) por grupo etário dos menores de 65 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

Em suma, por covid-19, por outras doenças, por negligência das autoridades de outros responsáveis políticos, certo é que os maiores de 85 anos estão a acelerar a partida deste mundo – depois de décadas de esforço na melhoria dos cuidados de saúde, que tornaram Portugal num país moderno e civilizado. E aparentemente não há quem deseje investigar as causas.

Sendo certo que a covid-19 teve o seu peso no excesso de mortalidade após Março de 2020, não se encontra (ainda) justificação (técnica e científica, excluindo bitaites mesmo se de “peritos”) para os actuais níveis de mortalidade nos maiores de 85 anos. Mostra-se assim necessário investigar em vez de especular; é necessário pegar nos dados brutos do SICO e analisar as causas de mortes antes e durante a pandemia para todas as faixas etárias.

E acabar com o alarmismo e o fomento do medo que anestesiou toda uma população, a tal ponto que a convenceu que a covid-19 era a “doença”, a única, a globalmente perigosa. O impacte da pandemia está por fazer, bem como as soluções, que não incluem apenas o ataque à doença, mas também uma análise crítica à gestão da pandemia, ou seja, as consequência da suspensão do Serviço Nacional de Saúde e mesmo os efeitos não estudados dos sucessivos boosters das vacinas contra a covid-19 nos mais idosos e nos outros grupos etários.

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Aliás, mostra-se fundamental mostrar que a covid-19, tendo sido um problema de Saúde Pública grave, teve níveis de gravidade completamente distintos, e que todas as acções implementadas de forma generalizada foram erradas.

O PÁGINA UM fez, aliás, uma “simples” e rápida análise comparativa da mortalidade por grupo etário em dois períodos homólogos: entre 1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019 (fase pré-pandemia) e entre 1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022 (fase da pandemia). Os valores absolutos comprovam que em Portugal se viveu um pânico colectivo sem justificação e que terá sido bastante contraproducente para uma gestão eficaz e eficiente.

Assim, no grupo dos menores de 1 ano, dos 1 aos 4 anos, dos 5 aos 14 anos, dos 25 aos 34 anos, dos 35 aos 44 anos e dos 45 aos 54 anos – ou seja, com excepção do grupo dos 15 aos 24 anos (situação que deveria ser também investigada) –, a pandemia não teve qualquer impacte, ou até mesmo paradoxalmente “positivo”. A mortalidade foi mesmo inferior. No caso dos menores de 1 ano, a redução até foi de 22% (na realidade um pouco menor, porque a taxa de natalidade desceu).

De resto, o impacte nos maiores de 55 anos foi muito distinto, mas a merecer prudência em assacar responsabilidades exclusivas à covid-19. Com efeito, o incremento da mortalidade nestes dois períodos foi muito distinto e não foi linear, como seria de supor se o SARS-CoV-2 fosse a única explicação.

Mortalidade por grupo etário na fase pré-pandemia (1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019) e na fase da pandemia (1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022). Fonte: SICO, Análise: PÁGINA UM.

No grupo dos 55 aos 64 anos e dos 75 aos 84 anos, o acréscimo de mortalidade entre a fase pré-pandemia e fase de pandemia foi de 8%, mas estranhamente foi de 12% no grupo dos 65 aos 74 anos. Ou seja, seria expectável – caso a covid-19 fosse o único factor a explicar este acréscimo – que a subida da mortalidade neste grupo etário estivesse algures entre o valor do grupo que o precede (55 aos 64 anos) e o que lhe segue (75 aos 84 anos).

Por outro lado, observa-se que o incremento da mortalidade nos maiores de 85 anos concentra o maior crescimento, o que tendo em consideração que é o grupo etário com maior peso absoluto. De facto, são quase 20 mil mortes a mais (128.224 na fase da pandemia vs. 108.559 na fase pré-pandemia). Tendo em conta que estamos a falar de 864 dias, significa um acréscimo de quase 23 óbitos em excesso por dia. Não foi tudo, certamente da covid-19. Nem o que está agora a acontecer tem essa tão singela explicação. Nem pode a onda de calor, que está agora por aí, levar com as culpas.

Mas a ignorância sobre toda esta situação é imensa, tanto mais que é fomentada pela própria Direcção-Geral da Saúde, instituição que nem permite sequer que se saiba qual o peso efectivo da covid-19 nos maiores de 85 anos – e também nos outros grupos etários.

Variação da mortalidade (%) por grupo etário entre a fase pré-pandemia (1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019) e a fase da pandemia (1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022). Fonte: SICO, Análise: PÁGINA UM.

Desde o início da pandemia, o Governo desfasou, com o claro propósito de obstaculizar qualquer análise séria, os dados da mortalidade total (contabilizados no SICO) e da mortalidade por covid-19. Assim, por exemplo, sabe-se quantas pessoas com mais de 80 anos morreram de covid-19, mas não se consegue calcular o contributo da doença na mortalidade total, porque os grupos etários usados no SICO vão dos 75 aos 84 anos e depois dos maiores de 85 anos.

Saber quais as doenças que determinaram, por exemplo, este desvio seria essencial, mas o Governo esconde os dados. Tal como esconde todos os dados e toda a informação, por amiguismo ou protecção política, que procurem fazer um diagnóstico dos problemas e encontrar soluções.

E um Governo que intencionalmente faz isto, faz isso para esconder a verdade. E uma sociedade que admite isto, aceita um Governo a fazer tudo.

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