O problema de ler um acórdão é que, quando se dá por ela, estamos a ler outro, ou uma coisa parecida. Desta vez mais simples e com linguagem que se percebe à primeira: uma deliberação, embora o senhor que é responsável seja um juiz, e logo juiz conselheiro.
Falo da ERC – que é, como quem diz, da Entidade Reguladora para a Comunicação Social –, que divulgou na quinta-feira a tal deliberação que se foca numa queixa feita pelo Partido Comunista Português (PCP) contra a SIC, a propósito de uma peça transmitida na edição de 6 de Março do “Jornal da Noite” sobre o comício dos 100 anos realizado no Campo Pequeno.
Antes de ir à deliberação, deveria dizer-vos em que jornal li sobre isto, para não pensarem que passo o dia a fazer refresh no site da ERC. Confesso: li em nenhum jornal.
Então?! Vi num rodapé da CNN? Também não.
Terá sido numa discussão de jornalistas indignados no Facebook? Epá!… também não.
Foi mesmo a “vastíssima” equipa do PÁGINA UM que me alertou. Fora isso, ninguém, absolutamente ninguém referiu o assunto.
Enfim, sabemos que há um sentimento mais ou menos generalizado sobre o PCP e o espaço mediático. São dos que mais pancada apanham e, até ver, a sua presença na antena dos comentadores ou mesmo no espaço informativo é muito reduzida.
Senão vejamos. A Marktest publica mensalmente uma tabela com as 10 personalidades com mais tempo de antena nos telejornais dos canais públicos e generalistas privados. Fui, por curiosidade, ver essas tabelas no período desde que começou a invasão da Ucrânia, ou seja, desde Fevereiro de 2022.
Num espaço de cinco meses – repito, cinco meses –, o PCP teve pouco mais de um hora de intervenção nas televisões portuguesas. Aparece neste ranking apenas no mês de Fevereiro e em nono lugar.
Para se ter uma noção das proporções, no mesmo período André Ventura tem mais de oito horas de antena, Sérgio Conceição cerca de 3,5 horas, Augusto Santos Silva um pouco mais de seis horas, Inês Sousa Real, do PAN, mais de quatro horas, tal como Catarina Martins do Bloco de Esquerda. Por sua vez, Rui Tavares tem 2,5 horas e até Fernando Santos, o treinador dos cinco trincos, tem mais de duas horas.
O espaço reservado para membros do PS ou PSD ultrapassa sempre as 10 horas mensais.
Portanto, não é preciso um estudo exaustivo para provar o óbvio: o PCP é o partido mais atacado pela comunicação social e, em simultâneo, aquele a quem é dado o menor tempo de antena para que se defenda.
Não é assim de estranhar que a deliberação da ERC passe absolutamente despercebida. É que, para além de dar razão à queixa feita pelo PCP, arrasa a SIC na sua tentativa de misturar informação com opinião, neste caso, pejorativa.
Eis os pontos que interessam reter:
– A referência aos 101 anos do Partido «como idade suficiente para dizer sempre a mesma coisa», assim como a referência à «cartilha» assentam numa avaliação pessoal e preconcebida do jornalista sobre as posições do PCP.
– Estando em causa uma notícia, não deve ficar patente a visão subjetiva do seu autor, nos moldes ocorridos no caso em apreço. O registo opinativo não deve constar de peças jornalísticas, devendo ser relegado para os espaços de comentário, devidamente identificados.
(aqui, acrescento eu, a SIC não se contenta com a dúzia de comentadores que já tem a desancar o PCP, precisa que os jornalistas façam as reportagens e induzam os espectadores à sua opinião sobre os factos relatados)
– Refira-se, por último, que a SIC apenas aparentemente está a dar voz às posições do PCP e a garantir o pluralismo político-partidário, uma vez que os elementos opinativos presentes na peça jornalística conferem um sentido negativo à informação noticiada.
– Assim, a peça jornalística não observa o rigor informativo, pelo incumprimento da necessária isenção e pela integração de elementos opinativos no discurso do jornalista, ao arrepio do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista
Conclui a ERC, dizendo:
a) Considerar que a peça jornalística, ao ter um registo opinativo, que desvaloriza e ridiculariza a posição do PCP, não observa o rigor informativo, pelo incumprimento da necessária isenção e pela não demarcação entre informação e opinião, ao arrepio do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista;
b) Instar a SIC a assegurar a difusão de uma informação que respeite o pluralismo, o rigor e a isenção, nos termos previstos no artigo 34.º, n.º 2, alínea b), da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido.
Ora, trocado para miúdos, o que significa isto? Significa que a SIC fez uma peça jornalística onde tentava influenciar a opinião dos espectadores de forma negativa sobre o PCP e, como consequência desse jornalismo encapotado, vai ter que… NADA.
Vai ter que ler esta deliberação aqui, cheia de tau-taus e consequências zero.
Isto é o equivalente daquelas passagens de infância pelo Pingo Doce para roubar Toblerones onde, depois de apanhados pelo segurança, se ouvia um raspanete e depois só nos deixavam levar os Twix sem pagar… Quer dizer, alegadamente; ouvi dizer.
Portanto, a primeira questão que coloco é para que serve uma entidade reguladora que não regula?
Depois, se cada grupo editorial tiver a sua linha de acção bem definida e “informar” sem rigor e a favor de uma agenda, que estímulo terão para parar?
Para além do brio profissional (ou código deontológico) que, espero eu, norteie os jornalistas, quem é que mete algumas regras nesta selva da informação e da manipulação de factos?
É que convenhamos, hoje (e ontem, vá), o alvo do ataque é o PCP. Quem é de direita não se incomoda, quem é de extrema-direita vibra.
Mas se a agenda mudar e o fogo cerrado cair noutras cores, certamente os desagradados serão outros.
É, na verdade, o princípio que está errado. Não há pluralidade no comentário com a opinião representada; basta pensar que Portugal é governado à esquerda há muitos anos e o espaço de comentário é largamente dominado, em todas as televisões, por pessoas de direita. E se a isso juntarmos notícias com agendas ideológicas, bom, sobra-nos pouco espaço para recolher informação e acreditar nas notícias.
O perigo é sempre o mesmo. Uma sociedade mal informada, é uma sociedade que não pensa e dificilmente reage. Em suma, uma sociedade mais dócil para quem comanda.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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