EDITORIAL

Incêndios rurais: o obsceno manto dos desculpabilizantes mitos

Editorial

por Pedro Almeida Vieira // Julho 17, 2022


Categoria: Opinião

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O tonto do Luís Osório escreve, para gáudio das senhoras que suspiram com as suas palavras – ui, tão duras mas ternurentas – e para agradecimento dos (ir)responsáveis políticos, garantindo que estamos numa “tempestade perfeita, quase 50 graus, vento e uns filhos da puta que mandam incendiar florestas para conseguir ganhar mais dinheiro”.

E vai ele ainda mais longe nas acusações: “Dinheiro, ganhar dinheiro, engordar cartéis que lucram com os incêndios porque têm produtos ou serviços para vender, por que querem despojar as florestas ou pela maldade pura que também existe como um abcesso humano.”

people walking near fire

De permeio, muitos elogios à abnegação dos bombeiros, “muitas centenas (…) extenuados”, onde “há os que enganam o corpo com fugas para a frente, com mais uma chama para apagar, com mais uma pessoa para proteger, mais uma casa, mais um animal. Há também os que já não conseguem mais, os que desmaiaram de cansaço ou que tombaram com a cabeça às voltas pelo fumo, pelo cheiro de queimado, pela pressão.”

Por sua vez, o pusilânime director do Público, Manuel Carvalho, surge com a lengalenga agora habitual de que nada pode ser politicamente feito porque, enfim, tudo ou quase tudo se restringe ao aquecimento global, e que isto “na floresta não se resolve com mangueiras ou roçadoras de mato, mas com o controlo de emissões de carbono”, desresponsabilizando o Governo pelas tragédias.

Por fim, temos o primeiro-ministro António Costa – que já assistiu, como líder do Governo ou como ministro da Administração Interna a duas catástrofes florestais (2005, com 350 mil hectares, e 2017, com 540 mil hectares e mais de uma centena de mortes) – a dizer que tudo é ”mãozinha humana” e que o fraccionamento fundiário (o minifúndio) é a causa estrutural na base dos incêndios rurais.

Podia continuar com a compilação de boutades e/ ou fazer uma antologia dos disparates. Canso-me.

Após ter escrito um livro de 472 páginas em 2006 – vão já longos 16 anos e mais de 1.700.000 hectares ardidos –, causa-me algum enfado fazer arder no queimado.

Portugal viveu e sempre viverá sob o manto irresponsável dos mitos.

O mito de ser um país de vocação florestal, quando sempre tivemos mais jeito para dar cabo das árvores. Portugal foi, durante praticamente a sua origem, um país escalvado, de charnecas, até quase finais do século XIX. Somente por condições políticas (não muito elogiáveis) e sociais (população maioritariamente rural e com o interior ocupado) se conseguiu, sobretudo na I República e no Estado Novo, fazer surgir uma floresta “artificial” e economicamente rentável.

O mito de ser um país que sofre as agruras dos incêndios por causa do excessivo fraccionamento das propriedades rurais, ou seja, do minifúndio. É de uma atroz ignorância histórica dizer que o minifúndio é um fenómeno recente. Particularmente na região a norte do Tejo, intensificou entre a Monarquia Constitucional, a partir dos anos 30 do século XIX, até um pouco antes da instauração da República.

Entre 1877 e 1909, o número de prédios rústicos mais que duplicou, passando de 5,06 milhões para 10,48 milhões, mantendo depois um crescimento muito moderado, inferior a 0,2% ao ano. No início dos anos 40 do século XX, atingiu-se um pico de 11,1 milhões de prédios rústicos, registando-se depois variações negativas numa primeira fase, até 1970, e positivas numa segunda fase, posterior a esse ano, cifrando-se actualmente em cerca de 11,6 milhões de prédios rústicos. Portanto, não houve uma mudança relevante nas últimas décadas em termos de estrutura fundiária, quando os incêndios se intensificaram.

Na verdade, o grande problema advém da redução populacional do interior e sobretudo do êxodo rural e do abandono das culturas agrícolas. Abandonando-se os espaços agrícolas, perdem-se as zonas tampão para “estancar” ou controlar os incêndios nas suas fases iniciais. Além disso, sem pessoas a trabalhar a terra também se deixa de ter vigilantes activos dos espaços florestais. No interior, agora, pode-se vaguear quilómetros a fio sem ver vivalma.

Temos ainda depois o mito das alterações climáticas, ou seja, de que os incêndios florestais derivam do aquecimento global e do aumento na frequência dos eventos meteorológicos que aumentam o risco de grandes incêndios. Sendo certo, e sendo uma evidência para mim, com base em estudos científicos, que o risco de incêndio aumentou nos últimos anos, também é certo que a tendência observada em Portugal – periódicos anos de catástrofe autêntica -seguido de anos de alguma acalmia – não se observa nos outros países.

green grass field under blue sky during daytime

Nas últimas duas décadas, Portugal já teve três anos com áreas ardidas superiores a 3% do seu território: em 2003, em 2005 e em 2017. Neste último ano, foram 6%. Nenhum outro país mediterrâneo, “sofrendo” do mesmo clima, apresenta tal estado de destruição. Ao invés, em média arde agora menos na Espanha do que nos anos 80 do século passado, o mesmo se verificando na França, Itália e Grécia.

O grande problema, nesta parte, é que Portugal não tem apostado de forma inteligente numa estratégia que tenha em conta um “inimigo” que se pode tornar mais perigosos nas actuais condições climáticas. Uma política ausente durante anos, que se resume a despejar dinheiro, com uma estrutura sempre em contínua mudança (para pior) – os serviços florestais foram completamente desmembrados – não vislumbra qualquer solução. Não houve nenhuma mudança perceptível desde 2017 que nos garanta que não se repita tudo.

Até porque está sempre omnipresente um outro mito: o dos incendiários, que foi sempre aquele que sempre me suscitou maior compaixão. Existem incendiários? Claro que sim. Mas serão eles, e apenas eles, que justificam a actual situação, ou o que sucedeu em 2017, ou em 2005 ou em 2003? Serão os incendiários desses anos terríveis diferentes daqueles que “actuam” nos anos em que arde pouco? Haverá algum factor que faça com que uma ignição causada por um incendiário seja diferente daquela que foi causada por actos de negligência? Vai um fogo mais depressa se for metido por um incendiário?

brown and black concrete floor

Além disto tudo, a tese de os grupos de incendiários contratarem bêbedos e pessoas com atrasos mentais para atear fogos é risível. Luís Osório, enfim, até lamenta, no seu lamentável texto, que “quem são presos são os pobres diabos que se vendem por uma grade de minis. Os mentalmente perturbados, os indigentes, os que podem ser carne para canhão.”

Vamos lá ver: imaginem uma corporação de malfeitores, pessoas que, vamos assumir, são estrategas, pensam para benefício próprio. Ora, alguma vez, na iminência de chorudos lucros por uma actividade criminosa – e, portanto, com risco –, eles contratariam “pobres diabos que se vendem por uma grade de minis”? Ou pessoas perturbadas? Claro que não! Seria estúpido. Nem o Luís Osório eles contratariam. Na verdade, sempre acreditei que se houvesse mesmo um grupo criminoso para fazer arder o país todo, ele já teria ardido todo. Como não há, assim “só” arde quase todo.

De facto, independentemente da estupidez do mito dos incendiários, o problema está sobretudo na ausência de acções preventivas eficazes ou eficientes. Ninguém deixa valores elevados num carro para depois culpar um ladrão. Um banco tem mecanismos de segurança e de gestão de valores para minimizar um eventual assalto. Uma cidade decente tem um corpo policial e políticas de integração para evitar um recrudescimento da criminalidade. As cidades japonesas infra-estruturaram-se para aguentar agora terramotos.

silhouette of man holding fire torch

Ou seja, o impacte do dano não depende somente do agente que o pode eventualmente causar, mas sim de factores com intervenção directa do Estado. Se há uma vaga de crimes, ou até de acidentes rodoviários por excesso de velocidade ou de álcool, a culpa não é apenas de quem o pratica, mas também do Estado que não cumpre a sua função de tornar uma sociedade regulada.

Por fim, temos ainda o mito que mais estragos tem causado à protecção da florestal: o mito dos salvadores bombeiros voluntários.

Recordo aqui, quando falo em bombeiros voluntários, sempre a luta de Miguel Bombarda, no início do século XX, quando quis que o sistema de saúde tivesse enfermeiras profissionais, que substituíssem as freiras que, com amor e carinho, mas também com fracos conhecimentos e treino, mais depressa enviavam almas para o outro mundo do que ajudavam os corpos a manterem-se neste.

O lobby dos bombeiros voluntários – que não são assim tão voluntários, e subsiste desde que os serviços florestais se desmembraram – tem sido a principal acendalha para a manutenção do frequente desastre dos incêndios rurais.

two firefighters walking on burned trees covered with smoke

Não está aqui em causa a abnegação e o amor ao próximo desses bombeiros voluntários – embora eu acredite que um profissional possa e deva ter essas características. E acredito que muitos bombeiros voluntários até preferissem ser profissionais, recebendo melhor treino, estarem sempre disponíveis e receberem uma remuneração compatível com a sua excepcional tarefa. E não terem de descansar ao relento, na berma da estrada ou em cima de bancos de jardim – imagens mediáticas, empolgantes, que demonstram sobretudo uma péssima logística dos serviços estatais e municipais de protecção civil.

Em Portugal sempre se confundiu conceitos: amor e amadorismo são palavras antagónicas quando o tema é incêncios rurais. Julga-se que onde há amor pela vida das pessoas e pelos seus bens, que se deve usar o voluntariado, porque esse amadorismo é mais genuíno a essas causas. Uma parvoíce. Se eu amo uma causa não devo fazer o que posso, mas devo fazer o que devo. E isso, no caso dos incêndios rurais, consegue-se melhor com profissionais do que com supostos voluntários, até porque uma parte destes segundos até recebe dinheiro.

Aquilo que verdadeiramente está em causa é a existência de uma estrutura corporativista, mal preparada e mal localizada (o risco diferenciado de incêndio não se compadece com a distribuição geográficas das corporações), e que se recusa a se profissionalizar, porque, dessa forma, não é regulada, não é convenientemente monitorizada nem sequer é responsabilizada quando algo corre mal. E corre muitas vezes mal.

silhouette of trees on smoke covered forest

Não existe,na sociedade portuguesa, nenhuma outra tarefa vitar que não seja exercida por profissionais. Temos militares profissionais. Temos médicos profissionais. Temos – e Miguel Bombarda haveria de gostar de saber – enfermeiros profissionais. Temos professores profissionais. Temos polícias profissionais. Temos cobradores de impostos profissionais. Temos tudo profissionalizado. Até políticos profissionais… Que motivos temos para contnuar com bombeiros denomiados voluntários? Ninguém questiona a quem interessa este status quo?

Já escrevi e repito: no dia em que – como, aliás, se fez na Andaluzia, por exemplo – se decidir colocar os bombeiros voluntários apenas a proteger os perímetros urbanos e casas (onde podem dar largas às mangueiras), e se constituir uma estrutura fortemente equipada e treinada de sapadores florestais – com funções de prevenção (criação de faixas de protecção, etc.), vigilância e combate – teremos a primeira batalha ganha desta guerra.

Se isso não suceder, continuaremos a ter de ler e ouvir pessoas como Luís Osório, Manuel Carvalho e António Costa a explicarem-nos que a culpa é disto e daquilo, menos dos políticos. E tudo seguirá o seu curso, com o país a ir variando do vermelho ao negro, entremeado por um efémero verde que se esfuma de tempos em tempos.

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