PRIMEIRA "BAIXA" DE CONSULTORES LIGADOS A FARMACÊUTICAS

António Morais “descartado” do Infarmed mas Ministério da Saúde “fecha-se em copas”

person with white and gold lipstick

minuto/s restantes

De forma discreta, o Ministério da Saúde “livrou-se” de António Morais, o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia que se manteve como consultor do Infarmed enquanto mantinha relações milionárias com a indústria farmacêutica. O Ministério da Saúde mantém o silêncio sobre medidas para acabar com a promiscuidade entre médicos e o sector dos medicamentos.


O presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais, deixou de ser, desde a passada quinta-feira, consultor do Infarmed. Alvo de um inédito processo de contra-ordenação – o primeiro a ser aplicado a um presidente de uma sociedade médica por violação do regime de incompatibilidades –, António Morais era consultor da Comissão de Avaliação de Tecnologias de Saúde desde Abril de 2016, tendo este afastamento sido confirmado ao PÁGINA UM apenas ontem à noite pelo conselho directivo do Infarmed.

O despacho desta cessação como consultor deste pneumologista, que preside à SPP desde início de 2019, foi publicado no Diário da República na passada quarta-feira, dia 13, tendo a assinatura do secretário de Estado-adjunto e da Saúde, o também médico Lacerda Sales.

António Morais, ao centro, numa foto durante a cerimónia de posse como presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia em Janeiro de 2019.

Nessa decisão não consta o motivo daquela cessação, que também abrangeu João Almeida Lopes Fonseca – professor da Faculdade de Medicina do Porto e fundador da MEDIDA, uma spin-off daquele estabelecimento de ensino superior – e a farmacêutica Maria Piedade Braz Ferreira, directora do serviço de gestão técnico-farmacêutica do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte.

O Infarmed não quis adiantar se o afastamento está directamente relacionado com a abertura do processo contra-ordenacional decidido pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) contra António Morais no decurso das investigações jornalísticas do PÁGINA UM.

Durante o seu 37º Congresso, em Novembro do ano passado, a SPP publicou um jornal diário. Na edição nº 2, António Morais cumprimenta o secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, que agora lhe fez o despacho de cessação de funções.

Por seu turno, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) somente respondeu ao PÁGINA UM após a publicação da primeira versão desta notícia, pelas 21:21 horas, por e-mail, informando que António Morais deixou de ser consultor em 2018, “informação que foi comunicada à IGAS”.

No entanto, o seu nome continuava a constar hoje como especialista em doenças do interstício pulmonar do Programa Nacional para as Doenças Respiratórias. Tanto a DGS como António Morais tiveram diversas oportunidades de esclarecer o PÁGINA UM sobre esta matéria, além de terem a obrigação de manterem dados administrativos actualizados.

Recorde-se que António Morais está acusado pela IGAS de violar o regime de incompatibilidades, uma vez que se manteve como consultor enquanto presidia a SPP.

Tal acumulação só seria possível se esta sociedade médica recebesse menos de 50 mil euros por ano, em média no último quinquénio, do sector farmacêutico. Porém, a SPP é uma das sociedades médicas com maiores relações comerciais com esta indústria.  

No quinquénio 2017-2021, que engloba já os três anos de presidência de António Morais, os montantes arrecadados pela SPP ainda aumentaram mais, situando-se nos 870.512 euros por ano.

Para este aumento muito contribuiu o ano passado em que a SPP recebeu um financiamento recorde vindo do sector farmacêutico de 1.301.972 euros. Uma parte considerável (320.000 euros) foi um patrocínio único da Pfizer para a promoção da vacina contra a pneumonia pneumocócica em plena campanha de vacinação contra a covid-19, da qual a farmacêutica norte-americana muito beneficiou.

Este ano, em menos de sete meses, de acordo com a Plataforma da Publicidade e Transparência do Infarmed, a SPP já amealhou 541.228 euros – ou seja, uma verba mais do dobro daquela que a SPP poderia receber em cinco longos anos para que António Morais pudesse manter-se como consultor da DGS e do Infarmed.

António Morais está apenas sujeito a uma multa máxima de 3.500 euros – que, grosso modo, corresponde a três webinares pagos por uma farmacêutica –, mas as implicações legais serão maiores, uma vez que os despachos que tiverem na base as suas recomendações são assim nulos.

Contudo, este processo coloca ainda maior ênfase na promiscuidade cada vez maior entre certos médicos, a Administração Pública e o sector farmacêutico.

Filipe Froes é um activo consultor da Direcção-Geral da Saúde, integrando a equipa responsável pelas terapêuticas contra a covid-19, mas só este ano foi já consultor de medicamentos da Gilead, da AtraZeneca e da Merck Sharp & Dohme.

O PÁGINA UM questionou hoje o Ministério da Saúde se retirava alguma ilação deste processo contra António Morais, e se iria manter como consultores da DGS ou do Infarmed os médicos que são simultaneamente consultores (advisory board) em farmacêuticas. Um exemplo paradigmático dessa situação é o do pneumologista Filipe Froes – e um membro destacado da SPP – que se mantém como consultor da DGS, integrando mesmo a equipa responsável pelas terapêuticas contra a covid-19, enquanto se multiplica em consultadoria de medicamentos em diversas farmacêuticas.

Froes, que este ano já recebeu quase 30 mil euros de farmacêuticas, exerce as funções de consultor da Gilead (especificamente para o anti-viral contra a covid-19), da AstraZeneca e da Merck Sharp & Dohme.  

O Ministério da Saúde não respondeu quer ao pedido de esclarecimento enviado ontem quer ao pedido de comentário endereçado hoje. Aliás, um comportamento habitual do gabinete de Marta Temido sempre que são colocadas questões incómodas ou delicadas.


N.D. Notícia actualizada às 21:53 de 19/07/2022 com e-mail enviado pela DGS às 21:21.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.