Caro amigo leitor, veja se consegue responder a esta questão sem ter de ir procurar em livros ou na Internet: quem foi a mulher do último rei de Portugal?
Se não sabe – ou até diz que nem sequer precisa de saber para continuar a sua vida –, tudo bem. Pode permanecer na ignorância sobre a sua própria História, pois esse é um direito que lhe assiste.
Aliás, num país que se diz republicano, acredito que até seja um ponto de honra e orgulho dizer que não sabe, nem quer saber, nem lhe interessa conhecer o nome da mulher do último rei de Portugal.
No entanto, um povo culto e conhecedor da sua própria História é um povo exigente. E, dessa exigência, resulta depois uma melhor escolha dos governantes. Só que há portugueses com orgulho na sua ignorância e, mesmo assim, permitem-se serem exigentes com os dirigentes. Estes, que não são propriamente burros, sabem que os outros, ignorantes da sua História, podem depois ser facilmente comprados com falinhas mansas e subsídios. É, aliás, da História.
Serviu esta introdução para dizer que há dias, na revista do Expresso (Edição 2591 de 24 de Junho de 2022), na secção de passatempos, nas palavras cruzadas, no 2 Horizontal, pedia-se que se indicasse, com seis letras, a “mulher do último rei de Portugal”.
Assim que olhei para aquilo, pensei que era uma questão muito inteligente e lembro-me de ter congratulado, mentalmente, o autor – Marcos Cruz – por ter apresentado uma tão interessante questão.
Repare-se que não estava a pedir o nome da “última rainha de Portugal”, embora se pudesse dizer que a mulher do rei é sempre uma rainha. Não. Se fosse a última rainha de Portugal, a questão poderia tornar-se aberta a subtilezas e interpretações jurídicas quanto ao que o autor das palavras cruzadas pedia. Seria a última rainha reinante, que foi D. Maria II, ou a mulher do último rei de Portugal?
Perguntar quem foi a mulher do último rei de Portugal é, assim, um pouco diferente do que perguntar quem foi a última rainha de Portugal, se bem que para uns puristas, uma e outra são sempre a mesma coisa: é mulher de rei? Então é rainha!
Mas, é preciso ver que o último rei de Portugal, quando deixou de ser rei, ainda não era casado. Não tinha rainha. Porque, como todos bem sabemos, o último rei de Portugal foi… bem, caro leitor, quem foi mesmo o último rei de Portugal?
A maioria das pessoas a quem coloco esta pergunta costuma dizer que o último rei de Portugal foi D. Carlos. Cada vez que me dizem isso, peço-lhes então que verifiquem os seus conhecimentos sobre a História que ambos partilhamos em comum pelo facto de termos escrito “República Portuguesa” no CC.
Se D. Carlos foi assassinado no Terreiro do Paço, a 1 de Fevereiro de 1908, pelo Costa e Buíça, e se, nesse mesmo dia, mataram também o seu filho mais velho e herdeiro do Trono, Luís Filipe, então Portugal ficou sem rei entre Fevereiro de 1908 e 5 de Outubro de 1910, data da Implantação da República?
Ora, claro que não, caro leitor. Claro que não porque, o último rei de Portugal não foi D. Carlos, mas sim o seu filho mais novo, que ficou para a História de Portugal como D. Manuel II.
Aclamado em Cortes, no mesmo edifício onde hoje é Assembleia da República, a 6 de Maio de 1908, seria deposto a 5 Outubro de 1910, tendo partido para o exílio, em Inglaterra, com a sua mãe, Amélia de Orleans.
Estabelecido então, sem sombras para dúvidas, que o último rei de Portugal não foi D. Carlos, mas sim o seu filho D. Manuel II, a questão levantada pelas palavras cruzadas do Expresso é, deveras, interessante.
Senão vejamos: D. Manuel II, último rei de Portugal estava solteiro quando foi deposto a 5 de Outubro de 1910. A rainha era a rainha-mãe, Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de D. Manuel II.
De facto, o último rei de Portugal casou. Mas o matrimónio só teve lugar em 1913, três anos depois de ter sido deposto do trono de Portugal, já quando estava a viver no exílio inglês. D. Manuel II casou a 4 de Setembro de 1913 com Augusta Vitória, princesa de Hohenzollern-Sigmaringen. Esta foi, de facto, tal como pedia as palavras cruzadas do Expresso, a “mulher do último rei de Portugal”.
Daí a minha primeira reacção ter sido a de verificar ali uma maneira muito inteligente de colocar a questão, já que, dizer “última rainha de Portugal” seria algo que levantaria dúvidas. Haveria quem defendesse que se deveria considerar Augusta como rainha, visto ter casado com um rei – mesmo que ele não o fosse na prática –, e haveria aqueles que defenderiam que a última rainha de Portugal seria aquela que ocupava o cargo em 1910, antes da abolição da monarquia, o que, nesse caso, era D. Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de Manuel II.
Mas a questão do Expresso era taxativa e sem espaço para dúvidas, uma vez que não nos embrenhava em questões jurídicas, apresentando-nos, sim, uma simples questão de cultura geral colocada de forma inteligente: quem fora a mulher de D. Manuel II, último rei de Portugal? E a resposta, única e inequívoca, é só uma: Augusta.
Só que, caro leitor, com quantas letras se escreve a palavra Augusta? Com sete letras. Mas a resposta que o Expresso pedia… seis letras. É nessa altura que aquilo que eu considerava ser a coisa mais inteligente que tinha visto no Expresso nos últimos anos, acabou por se transformar na dúvida mais agonizante sobre a ignorância histórica de Portugal, impressa num jornal que vai comemorar 50 anos de vida em Janeiro próximo e que é responsável pela informação transmitida a muitos portugueses.
E que forma opinião.
Será que o Expresso ignorava que o último rei de Portugal fora D. Manuel II e julgava que o pai dele, D. Carlos, é que era o último rei? É que Amélia, mulher de D. Carlos, tem seis letras… Será que a resposta certa era Amélia e não Augusta?
Esperei uma semana para confirmar a minha dúvida.
Uma semana depois (Revista Expresso 2592 de 1 de Julho de 2022), lá vinha a solução da 2 Horizontal, seis letras: Amélia. Para o Expresso, a mulher do último rei de Portugal chamava-se Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de D. Manuel II.
Esta ignorância da parte do Expresso é a mesma de muita gente em Portugal e que, infelizmente, ameaça contaminar as gerações futuras. Não vou entrar em clichés de afirmar que, quem não conhece a sua História está condenado a repeti-la, mas gosto sempre de avisar que George Orwell escreveu no seu 1984 que “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”. E o Expresso controla o presente. E se o Expresso nos diz que a resposta correcta à questão de quem foi a “mulher do último rei de Portugal” é Amélia, então o Expresso, ao controlar o passado, está a reescrever o futuro.
É que esta questão da mulher do último rei de Portugal não é de somenos importância. Ao ignorar que D. Manuel II foi o último rei de Portugal e que casou, mas morreu sem deixar descendência, é o futuro que está em causa.
O Expresso, ao ignorar isto, nunca vai conseguir informar os seus leitores que o último rei de Portugal morreu em 1932, há exactamente 90 anos – cumpridos a 2 de Julho –, três dias antes da tomada de posse de António de Oliveira Salazar como Ditador, a 5 de Julho de 1932.
O Expresso não vai assim poder contar que, um mês depois, a 2 de Agosto de 1932, Salazar presidiu ao funeral do último rei de Portugal, quando o corpo de D. Manuel II veio de barco de Inglaterra e o caixão desfilou depois pelo Terreiro do Paço, no mesmo local onde pai e irmão foram assassinados 22 anos antes, e sepultado no Panteão dos Braganças, no Mosteiro de São Vicente de Fora.
Na verdade, a Monarquia não acabou a 5 de Outubro de 1910, mas sim quando Salazar fez o funeral ao último rei de Portugal, em 1932, sendo que a mulher do último rei de Portugal, Augusta Vitória, faleceu a 29 de Agosto de 1966. Sem descendência.
O Expresso não vai conseguir ainda contar aos seus leitores que, por D. Manuel II não ter deixado filhos de Augusta, Salazar conseguiu manter o poder porque o país estava dividido entre monárquicos e republicanos.
Já estava assim desde 1910, pelo que houvera a necessidade de um golpe militar a 28 de Maio de 1926; mas, em 1932, os monárquicos estavam divididos sobre quem deveria suceder a D. Manuel II. Era preciso encontrar um candidato dentro do País ou então ir buscar, ao exílio, na Áustria, os descendentes do rei D. Miguel.
Mas este era de má memória, pois os descendentes representavam o rei banido do trono depois da derrota na Guerra Civil de 1832-34, contra o irmão D. Pedro IV, do qual D. Manuel II era o último representante real directo.
Para Salazar foi a oportunidade de ouro para dividir e reinar. Pediu aos partidários de uma solução interna que se mantivessem quietos, senão iria à Áustria buscar os descendentes do rei Absolutista, mais bem organizados. Disse depois a estes que estivessem quietos, senão iria encontrar uma solução interna. E disse aos republicanos que estivessem quietos, senão iria buscar não importa quem. E todos, “a bem da Nação”, ficaram quietos.
Nos anos 50 do século passado, seguindo uma proposta do deputado Jorge Botelho Moniz, terminou a chamada Lei do Banimento e os descendentes de D. Miguel puderam regressar a Portugal. Entre eles, veio uma criança chamada D. Duarte, agora o putativo rei de Portugal. O Estado Novo apostou na ignorância dos Portugueses e começou a controlar o passado. A controlar o nosso futuro. Já ninguém falava numa solução interna.
A 5 de Abril de 1967, o corpo de D. Miguel, após ter sido exumado na Áustria, regressou a Portugal e foi sepultado ao lado do corpo do irmão, D. Pedro IV. Pouco a pouco, o regime do Estado Novo começou a corrigir o resultado da Guerra Civil de 1832-1834, substituindo a memória de D. Manuel II, último rei descendente directo de D. Pedro IV e das ideias liberais, pelos descendentes de D. Miguel, absolutistas e conservadores. E, a 10 de Abril de 1972, já com Salazar morto e enterrado em campa rasa em Santa Comba Dão, o corpo de D. Pedro IV, foi trasladado do Mosteiro de São Vicente de Fora e enviado de barco para o Brasil, por ocasião dos 150 anos da Independência do País.
O Expresso bem que poderia dizer que, em breve, quando o coração de D. Pedro IV, que está na Igreja da Lapa, no Porto, voar num avião da Força Aérea do Brasil, por ocasião dos 200 anos da Independência do País, aquele será o último vestígio físico em Portugal do antecessor do último rei de Portugal. Mas para isso seria preciso primeiro que o Expresso soubesse a História de Portugal.
P.S. A pessoa que assina as palavras cruzadas do expresso é “Marcos Cruz”. É do conhecimento público que este é o pseudónimo de Mercedes Balsemão, mulher de Francisco Pinto Balsemão, dono e fundador do Expresso e descendente de um filho bastardo de D. Pedro IV. Tal não significa que tenha sido ela a responsável pela questão que provocou esta crónica. Poderá ter sido outra pessoa que a substituiu. De qualquer modo, em última análise, cabe ao director do semanário fazer a devida correcção. A mulher do último rei de Portugal chamava-se Augusta e não Amélia. Amélia era a senhora sua mãe.
Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor
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