Entre fogos e ondas de calor, parece ter escapado à comunicação social portuguesa uma importante vitória de um conjunto de trabalhadores perante as suas entidades patronais.
É, aliás, um reflexo dos tempos informativos e das estratégias de comunicação: somos massacrados semanas a fio com um, e um só, tema.
Durante dois anos, só ouvimos falar em covid-19.
Há pouco mais de um mês, Portugal ainda era o país com mais mortos por milhão de habitantes da União Europeia e um dos que registava mais casos diários, mas os directos dos parques de estacionamento dos hospitais já tinham sido substituídos, desde Março, por jornalistas de capacete em Kiev.
Entretanto começaram a puxar fogos às matas – um clássico lusitano de Verão como é o emigrante que regressa ao som de Tony Carreira – e lá se acabaram as ligações a Kiev.
Chegou a seguir a “praga do aeroporto de Lisboa”, com directos para discutir o número de dias que os passageiros não mudavam de cuecas.
Depois de descobrirmos que afinal a Portela estava igual ao resto do Mundo, por causa dos despedimentos pós-covid no sector, passámos à onda de calor.
Agora vemos cada nuvem de fumo, cada Canadair na barragem, cada bombeiro a tropeçar no repórter da CMTV. E pergunto-me qual será o tema 24/7 depois dos incêndios…
Mas voltando ao início: entre labaredas e morteiros, escapou-nos uma vitória laboral. Neste caso dos pilotos da SAS – a companhia escandinava que serve a Suécia, Dinamarca e Noruega.
A história conta-se rapidamente. Durante a pandemia, com os aviões no chão, o Governo sueco (e os vizinhos também) despejaram um rio de dinheiro nas empresas, com gigantes como a Volvo, Ericsson e SAS à cabeça. A micro-empresa onde trabalho também foi ajudada – e, portanto, sou o caso prático em como esse dinheiro chegou a todo o lado.
Se a memória não me falha, foi qualquer coisa como 2 mil milhões de euros a ajuda prestada pelo Governo sueco às empresas.
A teoria era simples. Tal como em Portugal ou em qualquer outro país da União Europeia, os Estados garantiam com este financiamento que trabalhadores impossibilitados de exercer funções não ficavam sem o seu ganha-pão. No caso da aviação, com praticamente tudo parado por imposição governamental, a ajuda era mais do que óbvia, justa e necessária.
Ora, mas o que fez a SAS com o dinheiro do lay-off? Dispensou 450 pilotos e aplicou um corte salarial aos que ficaram. Onde é que já viram isto? Exacto! Na TAP.
E se prestaram atenção, foi prática corrente um pouco por toda a Europa. Por isso, agora, todos, ou quase todos, estão em dificuldades para cumprir as exigências do mercado com o regresso dos passageiros e a normal procura por bilhetes.
Perante isto, os pilotos da SAS, de forma concertada, saíram pelo seu pé. Foram mil pilotos, para ser mais exacto. Durante 15 dias deixaram a SAS à beira da falência com um prejuízo diário entre nove e 12 milhões de euros. Ao fim de 10 dias, a companhia já tinha cancelado 2.500 voos e perdido cerca de 120 milhões de euros. Um A320 novo, para usar a “moeda local”.
Depois de duas semanas de greve, a companhia finalmente cedeu. Não só no corte salarial, mas também na re-contratacão dos 450 pilotos dispensados. Agora, depois de ter percebido que uma companhia não existe sem os trabalhadores, a administração da SAS vai a correr aos mercados buscar dinheiro fresco para se financiar e recomeçar as operações. A reestruturação já não será feita à custa dos trabalhadores.
Eu lembro que os países escandinavos são quase sempre representados na comunicação social portuguesa (ou nos cartazes da Iniciativa Liberal, vá!) como bastiões liberais e exemplos da flexibilidade nos direitos laborais. Agora, depois desta retumbante vitória dos sindicatos, imagino que a Suécia seja a nova Venezuela, e Oslo a nova Havana cheia de Teslas.
Podemos, assim, daqui tirar três conclusões.
Primeira: nem todos os povos aceitam sentados o que o patronato lhes impõe.
Segunda: injustiça alguma resiste a um movimento organizado de trabalhadores.
Terceira, eventualmente mais difícil de encaixar: os mais ricos também o são porque nunca desistiram de lutar pelos seus direitos.
E a nós, o que é que nos falta?
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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