Na próxima segunda-feira, inicia-se o 24º acampamento de escuteiros em Idanha-a-Nova. E o Corpo Nacional de Escutas quis ser, em matéria da gestão da covid-19, mais “papista” do que a própria Direcção-Geral da Saúde, impondo “controlo sanitário” prévio de entradas, com distinção entre vacinados/recuperados e não vacinados. Mas, afinal, confrontada pelo PÁGINA UM por via da ilegalidade desta discriminação e falta de sustentação legal e epidemiológica, a organização diz agora que, afinal, não passa de uma “recomendação”.
O lema cunhado durante a pandemia, “seja um agente de Saúde Pública”, está a fazer escola, e agora multiplicam-se os casos de “exageros de autoridade”, onde entidades sem funções públicas exigem o cumprimento de regras que nem sequer encontram respaldo nem na Ciência nem em normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e muito menos na legislação.
É o caso do Corpo Nacional de Escutas (CNE) que, num mega-acampamento (ACANAC) em Idanha-a-Nova entre 1 e 7 de Agosto, decidiu implementar plano de contingência “fora-da-lei”.
De acordo com os documentos a que o PÁGINA UM teve acesso, a organização deste evento escutista internacional nomeou um número indeterminado de responsáveis com a função de “assegurar que haja um responsável sanitário (poderá ser o responsável de contingente ou não, mas que deverá estar presente em Campo) que se certifique que cada participante do contingente tem pelo menos uma das seguintes condições: certificado de vacinação completo, ou certificado de recuperação válido, ou teste antigénio negativo 24h [24 horas] antes da entrada no ACANAC”. Esse responsável estaria obrigado a assinar um termo de responsabilidade.
Em e-mail enviado aos pais dos jovens escuteiros, a que o PÁGINA UM também teve acesso, é salientado o facto de se estar perante um “evento privado e como tal, em articulação com as autoridades de saúde pública locais, considerou-se que seria uma mais-valia para a segurança de todos os participantes que fossem cumpridas algumas regras para entrada” no acampamento.
Sucede, porém, que tanto em eventos privados como públicos, estas exigências não têm já qualquer enquadramento legal nem introduz qualquer benefício sanitário. Um detentor de certificado digital pode estar, no momento da sua exibição, infectado, pelo que a sua entrada sem teste num acampamento – assumindo-se que os testes em assintomáticos são formas eficazes de prevenção epidemiológica – seria até “perigosa”, ao contrário do que sucederia com um não-vacinado a quem se faria um teste para confirmar que estava negativo.
Além disso, recorde-se que, actualmente, o detentor de um certificado digital válido não tem já, na prática, e dentro do território nacional, qualquer “direito suplementar” ou benefício face às pessoas não-vacinadas ou que, sendo recuperadas ou recebido doses de vacinas, excederam o prazo do certificado. Todas as normas – algumas de constitucionalidade duvidosa e de eficácia preventiva questionável – que limitavam o acesso apenas a detentores do certificado válido e/ou exigiam, em complemento ou alternativa, um teste ao SARS-CoV-2 foram caindo nos últimos meses.
Mesmo desde o dia 1 deste mês, por despacho governamental “deix[ou] de ser exigido aos passageiros que entrem em território nacional a apresentação de comprovativo de realização de teste para despiste da infeção por SARS-CoV-2 com resultado negativo ou a apresentação de certificado digital COVID UE ou de certificado de vacinação ou recuperação emitido por países terceiros, aceite ou reconhecido em Portugal”.
Confirmando ao PÁGINA UM as exigências para a entrada no acampamento que se inicia na próxima segunda-feira, o coordenador de comunicação externa do CNE, Henrique Ramos, diz que a organização pretendeu “garantir o cumprimento de todas as condições de segurança para os participantes, sendo aplicadas e postas em prática pela Equipa Organizadora e de Serviço, todas as medidas que o possam garantir”.
Henrique Ramos acrescenta ainda que “quer na preparação quer na realização do ACANAC 2022”, se pretendeu que fossem “implementadas todas as medidas vigentes à data”, daí que “com o objetivo de diminuir o risco de contágio entre os participantes, decidiu a Equipa Organizadora do ACANAC solicitar aos agrupamentos participantes que se certificassem que cada participante do seu contingente não constituísse um risco para os restantes participantes.”
Porém, o porta-voz da CNE acaba por admitir que, “como estas condições não serão confirmadas pela organização, esta solicitação [exigência de certificado ou de teste prévio para acesso ao acampamento] assume na prática a forma de recomendação, sendo que por esse motivo nenhum participante será impedido de participar na maior festa do escutismo em Portugal.”
O PÁGINA UM contactou a DGS para comentar esta situação, mas mesmo com insistências, não obteve resposta, como quase sempre sucede.