Quando decidi ver a entrevista exclusiva da SIC ao “casal de Famalicão” (os tais que foram para tribunal por causa das aulas de Cidadania), tinha expectactivas consideravelmente baixas. O caso já tem uns anos e as posições dos ditos – ou do pai, vá!, que a mãe parece falar só quando a deixam – são amplamente conhecidas.
Confesso que não percebo o que leva uma família a fazer uma guerra tão grande por causa de algo tão simples e banal, mas entendo ainda menos o que teriam na cabeça quando aceitaram aquela entrevista. Obviamente, previsível seria ficarem expostos como um bando de retrógrados – que, convenhamos, até provavelmente serão –, e dificilmente a dita entrevista traria qualquer benefício para a sua causa. Por mais idiota que esta fosse, acrescento.
Se uma conversa de 30 minutos for filmada, e posteriormente transmitida, enfim, todos temos a hipótese de tentar perceber a argumentação; contudo, se apenas alguns excertos das respostas forem facultados, entre comentários de jornalistas e de alguns especialistas, a nossa percepcão é radicalmente diferente.
Ora, a SIC optou pela segunda via, criando assim, nos espectadores, uma opinião sobre aquela família ao mesmo tempo que, em teoria, lhes dava voz.
Digo de antemão que estou contra a posição daquela família – e todo o discurso daquele pai me parece inenarrável. Ainda assim, não gostei de ver um tribunal popular em formato de entrevista.
Aquilo que me parece realmente interessante discutir, em vez de nos focarmos no discurso beato deste casal, é tentarmos perceber a resolução deste imbróglio. Ou seja, não nos ofuscarmos com a árvore e perdermos de vista a floresta.
Neste caso, a floresta é a caixa de Pandora que se abrirá caso algum tribunal deixe uma família decidir a que disciplinas devem os filhos assistir. Podemos discutir programas escolares, debater conteúdos e até, quem sabe, alargar o centro de decisão para lá das paredes do Ministério da Educação.
Também me parece um bom debate perceber que tipo de ensino e que conteúdos farão sentido no ensino secundário em pleno século XXI.
Nada contra esse debate. Contudo, a partir do momento em que um programa é decidido, por quem foi eleito para o fazer, deve ser cumprido. Ou como diria o capitão Nascimento do BOPE: “missão dada, é missão cumprida, parceiro“.
Uma referência a filmes brasileiros com o Wagner Moura serve sempre para desanuviar o ambiente.
Mas falava eu em Pandora e caixas, porque será esse o caminho, se algum tribunal deste país der razão aquele casal devoto da Opus Dei.
Se eles puderem decidir, livremente, que os filhos não devem assistir às aulas de Cidadania – ou, nas suas palavras, não alinhar em palhaçadas, porque haveria a hipótese de irem a um museu onde o banco tem a forma de uma vagina –, o que nos impede de continuar essa estrada?
Se, daqui a 10 anos, os livros de História relatarem a invasão russa da Ucrânia e um pai achar que aquilo foi mesmo uma “Operacão Especial”, pode fazer idêntico pedido para que o seu rebento seja dispensado da disciplina?
Ou um terraplanista pode pedir passagem administrativa a Física?
O Mário Machado pode isentar os filhos do capítulo do Holocausto? E um vegan pode decidir se assiste à explicação sobre a cadeia alimentar ou não?
Um angolano, guineense ou moçambicano, residente em Portugal, pode optar por não ouvir falar na Guerra Colonial?
Já agora, um aluno que tenha pais brasileiros, tem mesmo que ver aqueles desenhos do Pedro Álvares Cabral a chegar ao Brasil e a ser recebido em festa pelos nativos que lhe ofereciam cestas de fruta?
E a comunidade indiana em Portugal, pode saltar aquela parte de Goa e das igrejas católicas lá plantadas?
O Ventura vai poder anular a inscrição se insistirem em falar naquela manhã de 25 de Abril de 74?
O Nuno Melo poderá reclamar quando os filhos descobrirem que o aborto é legal ou que tourada não é diversão?
O Cotrim ficará aborrecido se algum dos filhos ouvir falar do crash da bolsa de Nova Iorque em 1929 e começar a perder fé nos mercados muito cedo?
Os netos do Jerónimo não poderão ouvir falar da Primavera de Praga?
As caricaturas – ridículas bem sei – servem apenas para ilustrar até onde poderemos ir, nisto de misturar as nossas convicções, ideologias ou crenças com aquilo que é o programa oficial da Escola Pública. Eu também não compreendo por que razão a Religião e Moral é leccionada em escolas de um país laico, mas, se se decidiu que faz parte do programa, a discussão termina aí.
Podemos sim, sempre, discordar e discutir programas. Aliás, devíamos discuti-los mais. Agora, deixar ao critério de cada família o que as crianças e jovens devem aprender na escola, já me parece mais perigoso e um incentivo ao caos no Ensino.
Professores mal pagos e desmotivados, alunos que terminam os anos sem aprenderem tudo o que era esperado, índices baixos de aproveitamento a Matemática e Português, carreira docente absolutamente estagnada, passagens de alunos mais facilitadas para enchermos as estatísticas da União Europeia, alto abandono escolar, crianças prejudicadas pelos confinamentos impostos durante a pandemia, etc., etc. – isto, sim, são problemas reais a mais para um sistema tão débil num país que insiste em investir mais no alcatrão do que na formação das próximas gerações.
Com tantos fogos por apagar, esperemos que os tribunais não vistam, também, a pele de incendiário. Dar razão jurídica às teses dos “pais de Famalicão” seria a mecha.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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