Título
A última curva do caminho
Autor
MANUEL JORGE MARMELO
Editora (Edição)
Porto Editora (Fevereiro de 2022)
Cotação
15/20
Recensão
Nicolau Coelho, um reformado professor de Filosofia e escritor está a preparar-se para morrer. Anda na casa dos 80 anos e muda completamente a vida: abandona a sua rotina citadina, separa-se da mulher, Alba, que não o quer acompanhar porque “Parecia um plano perfeito, mas não fui capaz de prever que Alba se recusaria a morar na vila, longe dos centros comerciais e dos salões de beleza, dos ginásios e do peeling ultrassónico, das amigas e dos hipermercados, do design de sobrancelhas e das sessões de alexandrite. Demasiado tarde compreendi que ela não abdicaria das ambições, da comodidade e dos projetos que tem, das viagens que ainda pretende fazer, talvez de um amante ou dois e da vertigem que já não lhe proporciono…” e vai viver para a vila da sua infância tentando reencontrá-la e, com isso, reencontrar-se a si.
Cada capítulo conta uma história, num ritmo diacrónico que nos leva desde a infância, em África: “Vivíamos, o meu pai, a minha mãe e eu, como instalados numas férias perpétuas e sem maiores aborrecimentos do que os impostos pela necessidade de vigiar os pretos para que não se entregassem à preguiça e à vadiagem. Creio, por isso, que fui feliz em África, na fazenda onde o meu pai era capataz”, até às recordações da avó Adalgisa que foi viver para casa de Nicolau quando enviuvou e com quem aprende ladainhas e orações (há várias na íntegra em vários capítulos) e histórias de família e de antepassados que ele só conhece através das palavras da avó e ainda, no presente, as conversas com o Dimas, o dono da papelaria, “um homem amistoso e enérgico. Aprecio bastante cavaquear com ele, o que faço, sem falta, de cada vez que se me acaba o fumo e o pretexto para ir à varanda tomar um pouco do ar puríssimo e frio que nesta altura do ano sopra do lado da serra. Encontro-o quase sempre à porta do estabelecimento onde passa a maior parte do tempo, saudando quem passa e sorrindo para as raparigas novas.”
É um misto de poeta e filósofo e no livro há vários diálogos deliciosos entre os dois. “Entendemo-nos perfeitamente, o Dimas e eu. Se o cumprimento com alegorias do Evangelho de Nicodemo, ele responde com paráfrases de Álvaro de Campos” e a tentativa de compreender a história da sua prima Delfina que tinha sido internada num hospício por, durante meses, ter transportado o cadáver do pai, num carrinho de mão, para ir levantar a reforma, no posto dos Correios, com o uso das impressões digitais da “mão morta, mas ainda útil” numa descrição simultaneamente tétrica e divertida: “Os habitantes da vila estavam habituados a que Delfina chegasse à praça acartando Estanislau num carrinho de mão. Ela transpirava ofegante de quase correr, com o rosto encarnado e os músculos retesados pelo esforço de erguer e empurrar a carreta. O velho vinha lá deitado com as pernas abertas e parecia satisfeito: acenava com o cajado e mostrava um grande sorriso quase sem dentes.”
A inspiração para continuar a escrever não chega e Nicolau Coelho confessa: “Vim para a vila sem Alba – para recordar, mas também para morrer ou escrever, consoante o que acontecesse mais depressa. Mas não escrevo nada. Encaramo-nos de perto, cada vez mais próximos, o meu computador e eu. Opomos um ao outro as respetivas folhas em branco, a minha e a sua, como gémeos ciclópicos jogando ao sério.”
Há também um mergulho nas redes sociais e nas notícias online para compensar o afastamento da cidade e das suas relações de uma vida. O livro aborda ainda a questão da inteligência artificial naquilo que interessa ao narrador: uma máquina que escreva livros. Pondera como seria uma máquina que escrevesse por ele romances, que tivesse na sua inteligência artificial um catálogo de milhares de livros para se guiar e lhe fosse possível redigir uma obra.
Deixa de ter pressa e habitua-se aos ritmos do interior em abandono, reconstruindo memórias e protagonistas da história da sua família. Algumas personagens são inesquecíveis: Henrique Damião Coelho, o Cricas, o Quim pila de ouro, o Tronquinhas, o Fura Pitos, cada um deles a viver situações que nos prendem à narrativa e nos divertem e enternecem.
A memória da mulher permanece sempre presente e esperança que ela apareça também. Nunca acontece. O desfecho é inesperado. A vida deixa de fazer sentido e, para o leitor, fica uma sentença do protagonista: “Agora já não tenho necessidade de me justificar.”