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Sem pretendermos fazer qualquer aproximação específica, que seria abusiva para lá de toda a semelhança que existe entre todas as manifestações singulares, na difusa categorização genológica de arte, ocorre-nos, na leitura deste longo poema de Herberto Helder, a lapidar conclusão que Blanchot apresenta de uma leitura de um fragmento de Kafka:

Não se pode escrever senão quando estamos senhores de nós próprios diante da morte e apenas quando estabelecermos com ela relações de soberania. Se, diante dela, perdemos a continência, não a podemos conter, então ela tira-nos as palavras da caneta, corta-nos a palavra; o escritor não escreve mais, grita, um grito confuso que ninguém percebe e que não emociona ninguém. Kafka sente aqui profundamente que a arte é relação com a morte. Porquê a morte? Porque ela é o extremo. Quem dispõe dela dispõe de si, está ligado a tudo o que pode, é integralmente poder. A arte é o domínio do momento supremo, supremo domínio” (L’éspace Littéraire. Idées. Gallimar, p. 107).

Não nos parece nada descabido aproximar o conceito de ciência última do  de supremo domínio, propondo uma visão global, de um poeta dificilmente cernível no conjunto da sua obra. E isto  a propósito do livro que aponta, exactamente, para um entendimento encerrado, Última  ciência, embora, ironicamente, negando qualquer desfecho.  Não cremos sequer que seja necessário determinar a autoridade nietzschiana para encontrar, na busca do saber, o poder, o qual seria o campo de valências onde a indeterminação, eventualmente, nasceria, já que sobre a aproximação de última e extremo ou supremo parece não haver dúvidas.

É o próprio texto, porém, que liminarmente e lapidarmente no-lo diz, se os símbolos e a topografia do corpo não mentem, ou não são vazios incipit.  “Com uma rosa no fundo da cabeça, que maneira obscura de morte”. Não nos parece que estejamos aqui muito longe de  uma sabedoria de ocultas dimensões, antecâmara de um encontro nupcial com a sageza dos ocultos domínios. Duas personagens enchem permanentemente a cena da visão do saber que o livro patenteia: o eu da enunciação e a criança de múltiplos poderes que parece constituir a figura actancial privilegiada de relação com o cosmo e muito primordialmente com a origem matricial: a mãe, a placenta, a madeira, os minerais e os próprios astros e as suas propriedades.

Não é possível aludir a esta poesia carregada de simbologias altamente codificadas e de
metáforas profundamente inaugurais, ordenadas em sistemas de uma sumptuosidade que já
foi notada, por exemplo, por Gastão Cruz, numa pequena nota publicada em Phala n.” 11, sem fazer referência ao discurso alquímico, subjacente que parece ser o manancial imaginário forte, a carne e o plasma do texto de Helder.

Última ciência foi publicado em 1988.

Contudo, embora a profusão de rosas, e outras corolas matriciais, de pedras rutilantes, de metais preciosos, de leões de pedra, leopardos, formações cristalográficas e estátuas, de calcinações em dinâmicas figuras, e de outros elementos significativos, seja bastante grande para poder ser ignorada, ou minimizada, como lista ocasional ou frágeis ressonâncias semânticas e se apresente, antes, como paradigma amplamente declinado em ressonâncias poderosa no corpo do poema, é preciso fazer um reparo fundamental no caso presente: nunca o corpus simbólico pré-existente condiciona o processo do poema, nunca a produção verbal de Herberto Helder fica condicionada pelos elementos de sacralidade com que se confronta.         

Diríamos quase (e, para isso, relendo algumas das versões de As magias,arte poética última insistentemente republicada com acrescentos) que a ciência da máquina-lírica,  oráculo que, electrónico ou flogístico, parece ter sempre iluminado, com a sua sombra, a poéticado autor, se apurou no horizonte com a alquimia onde o verbo encontrou a negação de um discurso dialógico. O Iniji emerge (ciência primeira) com um romper de “um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era possível que nos confundíssemos com os torrões e calhaus.

Não havia nenhuma ciência, nenhuma lembrança” (As Magias, p. 11). No horizonte do sujeito poético emerge essa imensidão de uma sabedoria imemorial, uma língua que “não era de sedução para subornar, ou para dominar. Dela provinham as palavras (…) Existiam ao mesmo tempo que a vida não desligadas dela. Eram uma dança, uma natação, um voo, um movimento” (As Magias, pp 11-12). Sem afirmar aqui a metafísica implícita do autor, mas procurando antes vislumbrar o sistema de trabalho do seu “forno”, da sua “retorta”, dos seus “fluidos”, parece-nos de considerar que para Herberto Helder a gramática do saber original se postula como horizonte, como matriz no cosmo, origem do discurso poético, ainda que o forjar deste, preso embora à sacralidade e ao deslumbramento, nunca seja seu servo ou submisso repetidor.

Atrever-nos-íamos mesmo a afirmar que (perdoe-se-nos o sacrilégio), tal como os grandes poetas místicos de outrora, cátaros ou cristãos de outras doxas mais ou menos tuteladas, Herberto Helder se serve, notoriamente em Última ciência, do discurso sagrado dos símbolos de acesso à obra de transfiguração para com eles dar inicio à sua obra própria.

Toda a ordem litúrgica, toda a simbologia verbal de frase feita de fórmula lapidar é aqui submetida a uma segunda ordem de transformação perturbadora, reformuladora dos elementos essenciais de forma a atingir-se um novo plano de reelaboração do cosmo. E pensamos mesmo que, se em relação a ele tem todo o sentido falar do orfismo, isso deve-se, em grande parte a essa sua capacidade de transformar todo o canto, em canto próprio: verbo ritmo, ressonância cósmica.

Se Iniji é o saber antigo, original, matricial de onde emanam os sentidos da palavra assumida no puro evanescimento do seu valor próprio, a arte poética, dimensão rutilante da poesia, é esse diálogo com as sombras e com a luz a partir dos dados interiores da sua fundação, do seu mistério, aí, onde ela é magia. E magia não é um antes da palavra, um vazio, um branco, uma ausência, um nada. Ela só é possível quando se sabe e se assume que a transfiguração é a das palavras e que no ofício divino, na mestria do universo, quer o diálogo seja com as sombras quer com a luz ou com os deuses “cada imagem é a cicatriz de outra imagem” e que “a mão experimental se transforma ao serviço escrito das vozes”.

pen on white lined paper selective focus photography

Numa obra que nunca se recusou a qualquer das experiências dos limites (e sempre, da abjecção à alquimia, o grande limite é o de “uma vida selada”), este texto de Herberto Helder aparece-nos como mais um curioso culminar. Para um poeta que já se silenciou tantas vezes, não sabemos nunca como olhar através dos seus escritos que se querem últimos. É ainda em Ultima ciência que lemos o oráculo do discurso da morte que, aí, cicatriz de uma imagem de fim, nos afirma “inocente … Arte de redacção: ver isto, ver a morte – dar-lhe um nome de diamante com o nervo dentro” (p. 43). Voltará depois da morte conhecida e dominada?

Segundo Eco, na “sociedade de massas, na época da civilização industrial, observamos um processo de mitificação afim ao das sociedades primitivas e que, todavia, no início, procede muitas vezes segundo a mecânica mitopoética posta em prática pelo poeta moderno” (1991: 250), parece-nos interessante observar como nesta actualidade se apresentam alguns procedimentos ou figuras variantes  das metamorfoses (a transfiguração, a camuflagem, o disfarce, a máscara ou a ocultação), quando elas se reformulam nos espaços modernos das cidades, numa partilha entre os mistérios nocturnos, da esfera órfica e infernal, e o bulício urbano, em que ao confronto tradicional do cidadão e do seu vizinho, desde a Antiguidade (o «ateniense», o «romano») até à Revolução Francesa (o «burguês») se opõe o face a face,  entre o anonimato do próximo como ente emergente da multidão (a sempre ameaçadora hipótese de uma alteridade estranha e inquietante), e o sujeito que  percorre esse turbilhão de estranhos, como transeunte indiferenciado: o indivíduo das massas.

A ideia de procurar compreender alguns fenómenos culturais, transpostos para textos literários magnifica-se, ao que parece, na poética de Herberto Helder, onde todo o sistema poético assenta na assunção de que a continuidade está sujeita a rupturas que, se não forem tratadas como transformações – ou transfigurações, ou devorações, ou desapossamentos – redundam no desaparecimento, no esquecimento ou na morte.

yellow and brown leaves on white ceramic tiles

A constante reaparição da sua obra depois dos finais anunciados da escrita, apontam, de algum modo, para uma estética do estertor, em que a obra é uma efémera evanescência e a vida um continuo entrecortado de cortes, de amputações e de outras formas incisivas das variantes da ruptura na busca de uma metamorfose final.

Vemos, na preocupação constante que o poeta ostenta de encerrar a obra e de a eternizar como Livro, sempre seguida da exaltação do livro reeditado sob transformação (Ofício Cantante….Poesia Toda) – numa espécie de frenesim onomástico ou veneração do batismo como ritual propiciador do renascimento transfigurador, arrastando esse movimento, os actos mutação, reformulação, jogo de variantes, tendentes a assegurar a continuidade sob a forma mutações – uma atitude de regulação vital da poesia, ou da poesia como vitalidade.

Toda essa actividade de escrever para ser ou de existir como escrita força certos posicionamentos fundamentais ao poeta. Julgo que podemos destacar dois: a apropriação dos acervos e modelos poéticos como matrizes a serem transformadas (com a variante forte da publicação da “antologia”, ou das “traduções”, dos mananciais da poesia exótica ou enigmática, normalmente de origem popular e anónima); e a preparação da obra própria enquanto espólio labiríntico, eivado de “artes poéticas” de tons órficos e elaboradas conceptualizações heraclitianas.

 É claro que, para a percepção de um leitor ou poeta, ou qualquer entidade colocada na convergência dessas duas funções, o assumir desses dispositivos de produção poética se encaminha para um jogo de dimensões demonológicas. O tocar numa obra por qualquer entidade introduzindo-lhe transformações por constituir uma adaptação, uma outra obra inspirada na primeira, dá origem àquilo a que Herberto Helder chama “obra maléfica” (Photomaton e Vox, p. 21) – qualquer coisa como uma “opus nigrum”[1]. O que nos deixa perante uma revelação que nem sempre se patenteia a quem se deixa envolver pelo poderoso discurso poético de Herberto Helder.

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Esta percepção é transmitida pela seguinte afirmação de Frias Martins: “a poesia é levada pela assunção do amor pelo caminho de tudo aquilo que diante dos olhos (da luz) se encontra e cuja mensagem se destina derradeiramente ao coração” (1983: 33). Não obstante a correcção desta observação, temos de reconhecer que ela se manterá sempre incompleta, quando atendemos ao conjunto da obra de H.H. em todas as suas dimensões. E isto porque uma boa parte da sua obra parece obedecer mais aos apelos do demoníaco, e de um erotismo ordenado por Thanatos. Não será essa uma das figurações de Orfeu? O que resta de amor, depois da ida às regiões da morte.

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

Martins, Manuel Frias, 1983, Herberto Helder, Um Silêncio de Bronze, Horizonte, Lisboa

Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa


[1] “Opus Nigrum”, é uma velha fórmula alquímica que significava a fase de separação e dissolução da matéria, mas para pior.

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