Até há cinco séculos, a promulgação de leis pelo Estado era algo pouco comum. Esperava-se que as pessoas fizessem o que era a prática comum numa dada comunidade e se abstivessem de fazer aquilo que as pessoas “pouco decentes fazem”.
De certa forma, essa noção ainda hoje persiste. Os polícias, por exemplo, tendem a ver os criminosos em geral não exactamente como infractores da lei, mas como pessoas que fazem coisas que pessoas decentes não fazem: “Eu não saio por aí a roubar coisas”.
Os sistemas jurídicos anglo-saxónicos ainda preservam essa tradição: a Common-law. Os casos são resolvidos através de um caso anterior semelhante e, em seguida, estendendo a decisão precedente sobre a nova situação aparentemente relacionada.
Funcionou bem para as pequenas comunidades, muito unidas e com poucas diferenças, mas com sociedades crescentemente complexas, isto é, com grupos sociais com distintas culturas, aquilo que parece óbvio para um grupo social pode ser um absurdo para outro.
O sistema legal romano foi outra abordagem que existiu no passado, criado com um vasto império, de pessoas e culturas amplamente diferentes. Nele, não havia lugar para o direito comum: tudo o que se proíbe está escrito; tudo o que não é proibido é permitido.
É assim que os sistemas judiciais funcionam na maior parte do Mundo nos nossos dias. No entanto, com uma diferença importante: os juízes eram bastante livres para interpretar a lei escrita à sua maneira. Desta forma, a lei, no sistema romano, acabava por não ser algo a ser obedecido literalmente, mesmo que tal literalidade fosse possível. As leis eram directrizes e não obrigações morais, onde o costume determinava se uma determinada lei era compreendida e aceite pela sociedade em geral.
Com o advento do Estado Moderno, onde as burocracias imperam, começou a tratar-se a lei escrita como algo divino, aquilo que denominamos por “positivismo”, pois as leis promulgadas são chamadas de “direito positivo”, em contraste com o direito consuetudinário – construção jurídica baseada em costumes a partir das tradições dos povos de determinado local e que passaram a ser aceites como norma.
A actual teoria do Estado todo-poderoso surgiu no momento em que um monge martelou um pedaço de papel na porta de uma igreja – na noite das Bruxas, nada menos! –, altura em que se viviam importantes revoltas sociais no norte da Europa.
A criação de Frei Martinho Lutero de uma religião totalmente nova não foi uma causa, mas uma consequência da sua martelada na porta de uma igreja. Ele desejava desafiar uma pessoa do seu bairro que andava a angariar fundos para a construção da Basílica de São Pedro, em Roma, para debater com ele a legitimidade das suas “técnicas de venda”.
A véspera de Todos os Santos foi o momento perfeito para pregar as suas propostas na porta daquela igreja em particular, já que no dia seguinte seria realizada a maior exposição de relíquias sagradas de todo o norte da Europa, garantindo a propagação da sua mensagem a milhares de peregrinos.
Lutero, um professor que conhecia as Sagradas Escrituras, desafiava uma pessoa que provavelmente conhecia as Sagradas Escrituras apenas do que escutava nas suas idas às missas, com as seguintes regras: todo e qualquer argumento deveria ser extraído das Escrituras – algo justo!
A religião era então, e ainda é – seja o cristianismo, o islamismo, o budismo ou o moderno ateísmo –, a lente através da qual vemos, a lógica com a qual interpretamos, o mundo ao nosso redor.
Naquela época, na Europa, a religião significava uma coisa, e apenas uma coisa, em todos os lugares. Não apenas os seus princípios morais formavam a estrutura de comportamento aceitável, mas o tempo religioso – o calendário litúrgico – deu às pessoas a própria noção de tempo.
As práticas religiosas – por exemplo, as peregrinações àquela igreja onde Lutero martelou as suas propostas – eram essencialmente universais e partilhadas por todos; a autoridade religiosa era a base da autoridade civil, e assim por diante.
A autoridade religiosa não significava que um rei fosse considerado um procurador de Deus. Muito pelo contrário. Na verdade, significava que o trabalho de qualquer governante podia e devia ser comparado com o que era então universalmente aceite como vindo de Deus; governaria como representante do povo. Não de Deus: do povo.
A voz do povo era a voz de Deus, e, muitas vezes, era a visão do povo sobre o que era certo e o que era errado, dentro do contexto de um consentimento religioso absolutamente unânime, que manteria ou deporia reis e príncipes.
A autoridade de um governante, portanto, dependia de como ele usava a sua – bem pequena – autoridade. Ele realmente tinha o poder de aprovar algumas leis positivas, mas a lista de requisitos era bastante vasta. Entre outras coisas, não podia aprovar uma lei que não fosse útil ou que fosse contra o costume estabelecido. O rei era uma espécie de velho patriarca que não diria aos seus filhos e netos como governar as suas próprias casas, mas cuja autoridade seria respeitada para resolver disputas.
Além disso, toda a sua autoridade vinha de compromissos: ele teria que proteger cada uma das pessoas que viviam nos “seus” territórios, enquanto o povo teria que alimentá-lo, tal como aos seus exércitos privados – ridículos em comparação com os exércitos modernos. Ele era um servo da terra, o mais baixo servo, pois seria o último a abandonar o território.
Entretanto, uma mosca feia, gorda e peluda presa na pomada da sociedade estava a surgir: o dinheiro. Mais especificamente, o facto de que havia uma presença cada vez maior do dinheiro na sociedade, apesar de não haver então lugar para ele.
De acordo com a Lei – isto é, com o costume –, alguém que nascesse guerreiro ou agricultor teria para sempre tal estatuto na sua vida terrena. A única escolha real era o ingresso na vida eclesiástica, uma espécie de terceira via.
O dinheiro não fazia diferença: um guerreiro rico ainda deveria ser um guerreiro, arriscando o seu pescoço pelos outros; um agricultor teria de continuar a lavrar a terra e não podia comprar ou vender terras. Todo o dinheiro do Mundo não podia transformar um guerreiro num agricultor, ou vice-versa.
O comércio começou a enriquecer algumas pessoas. A maioria vinha de famílias de agricultores. Não havia lugar para os ricos na sociedade, mas eles conseguiram esculpir um lugar para si, usando o seu dinheiro em benefício dos militares. Não é uma novidade, algumas dessas pessoas continuaram a fazê-lo até aos nossos dias. O principal fabricante de armas da Alemanha em ambas guerras mundiais foi a Krupp, um conglomerado familiar que começou naquela época como um negócio familiar.
Antes que os ricos chegassem à cidade, não havia tal coisa. Havia castelos com fossos, mas, infelizmente, sem dragões, e terras em redor. Quando havia guerra, os civis entravam no castelo e os militares saíam, mas em tempos normais era o contrário.
Com o dinheiro, surgiu algo novo. Os novos ricos começaram a financiar os muros, cada vez maiores, ao redor das muralhas iniciais do castelo e, por sua vez, construíram casas e lojas dentro das novas muralhas.
O nome dessas cidades comerciais que se desenvolveram entre as muralhas originais e as novas e maiores do castelo era o Burgo – a fortificação que servia de abrigo às populações situadas fora das muralhas. Os seus habitantes ficaram conhecidos como a “burguesia”.
Obviamente, os militares e a burguesia “tornaram-se amigos”, em detrimento dos pobres, que continuavam fora das muralhas originais – e do burgo. Na época de Lutero, as revoltas dos camponeses estavam a começar a ser comuns em todos os lugares, mas os militares (os nobres) estavam de mãos atadas, por essa desagradável tradição de obedecer a Deus. A revolução de Lutero forneceu-lhes a escapatória.
Mais do que isso, instalou-se uma nova autoridade religiosa que diria aos príncipes como lidar com os camponeses revoltados: “Contra as hordas assassinas e saqueadoras molho minha pena em sangue, seus integrantes devem ser estrangulados, aniquilados, apunhalados, em segredo ou publicamente, como se matam os cães raivosos”.
“Como se matam cães raivosos” foi estendida a todas as seitas que não se juntavam ao seu novo governo – a Igreja Luterana – aprovado pelo Estado (ou melhor, aprovado pelos governantes locais; os Estados eram muito pequenos e ainda sem importância, e, acima de tudo, o poder era 100% pessoal: o Estado era o seu rei).
É por isso que todas as denominações protestantes de hoje podem traçar as suas linhagens institucionais e teológicas até uma ou duas das três seitas protestantes aprovadas pelo Estado do século XVI: luterana, calvinista e anglicana. Todas as outras opções que surgiram de diferentes interpretações da Sola Scriptura foram obviamente eliminadas – “como se matam os cães raivosos”.
De certa forma, algo bastante semelhante já tinha acontecido alguns séculos antes, quando a seita gnóstica dos cátaros surgiu no sul de França e Norte de Itália. Ao tornar-se um cátaro, a pessoa libertava-se de todos os compromissos e obrigações anteriores, a base da então ordem social. As pessoas começaram a persegui-los e a matá-los, nomeando-se ao mesmo tempo juízes e carrascos, algo intolerável para a Igreja Católica. Foi assim que a Inquisição surgiu: para libertar os falsamente acusados.
O sul da França, na época dos problemas cátaros, era o centro do mundo; o norte da Europa no tempo de Lutero era o deserto, os arredores da civilização. Foi assim que a nova religião conseguiu tempo suficiente para obter massa crítica e, desta forma, sobreviver muito mais tempo do que o catarismo.
O calvinismo – apoiado diretamente pela burguesia de Genebra – era então um fenómeno local, que sobreviveu tanto pelo caos completo no Norte quanto pela falta de importância da Suíça na época. O facto de os suíços serem tão ferozes, a ponto de todos quererem contratá-los como mercenários, ajudou a protegê-los.
Assim, começaram as Guerras Religiosas Europeias e, por gerações e gerações, a Europa tornou-se um vasto campo de batalha onde os seguidores da Antiga e da Nova Religião tentavam obter vantagem para libertar os outros do jugo das suas horríveis heresias e superstições. Cem anos de derramamento de sangue.
Qual foi a solução? O Tratado de Vestfália. Pode ser resumido ao seguinte: a religião de cada pequeno governante seria imposta a todos os seus súbditos. Por outras palavras, enquanto antes da revolução Luterana todos concordavam sobre o que Deus queria que um governo fizesse, e a sua autoridade repousava na conformidade a essa visão comum, depois da Vestfália cada governante local ganhou autoridade para decidir, por conta própria, qual seria a verdade de Deus.
Os reis foram, de facto, colocados acima de Deus, recebendo o direito de julgar se o que sempre foi considerado por todos, em todos os lugares, como Revelação Divina se era ou não verdade.
Para implementar a “nova verdade”, iniciou-se a propaganda de estado em grande escala. Iniciou-se pela interpretação das Escrituras Sagradas da seita vencedora, obviamente imposta pelo Estado, através da criação da “educação pública”, uma invenção protestante. Doutrinar a versão correcta era o lema.
Hoje, a doutrinação das crianças no sistema escolar alcança níveis nunca imaginados, temos como exemplos a “civilização e progresso decorrentes do pagamento de impostos” – até existe um livro, a Joaninha e os impostos –, a “ideologia de um conjunto de letras sem fim” ou mesmo a nova “ciência emanada da DGS”. Um sem-fim de programas escolares destinados a criar um homem-novo – o comunismo também se propunha a tal.
A revolução Luterana abriu caminho para o direito divino absolutista; por cá, o expoente máximo foi o Rei D. José e o seu “carrasco”, o Marquês de Pombal. Apesar de terem sido “déspotas esclarecidos” não tinham o poder, longe disso, que um Estado moderno hoje possui. Algum cabeleireiro naquele tempo teria que pedir uma licença estatal para abrir ou inscrever-se nas finanças assim que abre actividade?
O passo lógico surgiu depois: do rei absoluto passámos ao povo absoluto, surgindo essa entidade metafísica denominada colectivo. O colectivo até passou a escrever constituições – o contrato social. Sempre achei divertidas as entrevistas a dirigentes do Partido Comunista, onde todos invariavelmente afirmavam não serem responsáveis por nada, tudo tinha sido decidido pelo colectivo!
O Estado, tendo absorvido o poder supostamente cedido “pelo colectivo”, tornou-se ainda mais absoluto do que qualquer monarca absoluto. Afinal, enquanto um rei ou uma rainha absolutista podia ignorar a vida real do “seu” povo, a ponto de acreditar que “dar-lhes brioches” seria a solução para a falta de pão, um Estado moderno tem olhos sem fim.
Hoje em dia, com toda a tecnologia que um Estado pode colocar a seu serviço, o seu problema não é ignorar o que realmente significa a falta de pão, mas analisar todo o vasto fluxo de dados que lhe chega. Ele ouve cada palavra falada em cada telemóvel, mas necessita descobrir o que vale a pena ouvir. Ele vê em tempo real as pessoas que circulam pelas cidades, mas necessita descobrir quem observar. Ele necessita de nos impor um passaporte sanitário para circular numa fronteira ou entrar num restaurante, mas necessita saber como identificar os dissidentes que não se vacinaram.
A revolução Luterana não trouxe apenas a tirania absoluta do Estado, que se concentra agora numa tentativa de estabelecer um governo global, através de instituições globais que definem a nova religião, onde um conjunto de sacerdotes pretende governar em nome da Humanidade, do Clima e do Planeta.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
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