Em inglês chama-se SLAPP – acrónimo, que faz lembrar estalo (slap), para Strategic Lawsuit Against Public Participation. Consiste em processos de intimidação, perseguição e silenciamento, quase sempre recorrendo a processos judiciais ou similares, não apenas para desacreditar vozes independentes como para lhes causar danos patrimoniais.
Esta estratégia, muito em voga em diversos países, teve já em Portugal um infeliz momento, quando o então presidente (de “má memória”) do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha Nascimento, moveu mundos e fundos (públicos) para levar à condenação do então director do Público, José Manuel Fernandes, por um artigo de opinião em 2006. A República Portuguesa acabaria condenada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por esta decisão que teve contornos kafkianos e pouco abonatórios de um país que defende a liberdade de imprensa na sua Constituição.
Ora, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) parece querer agora introduzir um novo patamar no SLAPP lusitano, predispondo-se a ser uma “plataforma” para silenciar, desacreditar e intimidar vozes independentes e incómodas do jornalismo português.
Para resumir: como se sabe, a ERC aceitou em Abril passado uma queixa do senhor António Morais, circunstancialmente presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), por o PÁGINA UM ter publicado diversos artigos de investigação sobre a promiscuidade desta associação perante os interesses das farmacêuticas durante a pandemia. Dados públicos, exactos. Tentativa de ter contraditório, foi feita; impossível por a SPP se ter sempre recusado a dar informações.
O senhor António Morais, circunstancialmente presidente da SPP, escreveu mesmo que os artigos do PÁGINA UM tinham “consequências [negativas] para a Saúde Pública“.
Na verdade, as consequências eram apenas para o senhor António Morais e seus apaniguados.
De facto, no mais puro e nobre jornalismo de investigação e de denúncia – em qualquer lado democrático –, as notícias do PÁGINA UM tiveram consequências, mas mais ao nível da “limpeza ético-atmosférica”: o senhor António Morais está a ser alvo de um processo de contra-ordenação, depois de um processo prévio de averiguação, pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, e foi entretanto “chutado” por evidentes incompatibilidades pelo Infarmed como consultor.
Basicamente, o senhor António Morais – que, entretanto, por exemplo, andou a fazer publicidade ao Paxlovid, da farmacêutica Pfizer – só podia ser simultaneamente consultor de um organismo público e presidente da SPP se esta última entidade recebesse menos de 50 mil euros por ano das farmacêuticas. A SPP recebeu mais de 800 mil no último quinquénio. No ano passado recebeu 1,3 milhões de euros do sector do medicamento. Havia dinheiro a rodos; os leitores poderiam tirar as suas conclusões; é esta a função essencial do jornalismo.
Mas, SLAPP: a ERC – já muito incomodada pelas questões que o PÁGINA UM lhe tem andado a colocar – decidiu fabricar uma farsa e arranjar para si o papel principal: farsante, travestindo-se de regulador para vir em defesa da carcomida honra de certos respeitáveis senhores doutores.
Por aceitar a queixa da SPP? Não. Ora essa! Por quem sois!
Pode a ERC sempre aceitar queixas, embora tenha o dever de as analisar previamente, e definir de forma clara uma acusação (ou um arquivamento), e não simplesmente solicitar uma defesa obrigatória, sem a qual (segundo os seus absurdos Estatutos) se está perante uma assumpção da culpa (é mesmo assim).
Ou seja, a ERC tem a obrigação de proteger os bons cidadãos da má imprensa, mas deve proteger também a boa imprensa dos maus cidadãos. Caso contrário está-se perante o consumo de recursos (tempo e dinheiro) em sucessivas defesas de obtusas acusações. E, nessa medida, um verdadeiro regulador da comunicação social deveria ser, de igual modo, um instrumento para contrariar a estratégia do SLAPP.
Ora, mas onde está então a farsa encenada pela ERC? Está em ter composto um processo falsamente justo e imparcial, que, por tão mal engendrado, acaba por ser mais triste do que trágico.
Na passada terça-feira, dia 2 de Agosto, mais de três meses após a instauração do processo, recebi um ofício da ERC com um convite para ir às suas instalações no “prazo de 10 (dez) dias úteis contados a partir do dia seguinte ao dia de recepção da presente notificação para, querendo, vir ao processo apresentar documentos e outros elementos que considere pertinentes”.
E lá fui eu, diligente, à ERC no dia 3 de Agosto, ontem, portanto.
E o que vi?
Primeiro, uma dificuldade inicial para consultar o processo, que apenas se desbloqueou quando comecei a manuscrever uma exposição de protesto.
Depois, lá tendo conseguido que o processo ficasse disponível, abriu-se o pano para uma má peça de teatro – por maus actores.
Assim, ao longo de 134 páginas, em vez de surgir no final um projecto de deliberação – que basicamente poderia ser contestado com depoimento, acréscimo de documentação ou mesmo indicação de testemunhas –, encontrava-se, hélas, já devidamente assinada na página final e rubricada em todas as outras, por todos os membros do Conselho Regulador da ERC, a Deliberação ERC/2022/225 (CONTJOR-NET)… Uma Deliberação. Uma decisão final formalmente assumida.
Em termos práticos, imaginem uma sessão de julgamento, com réus e advogados e testemunhas, e um juiz muito atento, a ouvir todos e a fazer perguntas, e debaixo da secretária com a sentença já escrita.
E pior ainda: a Deliberação ERC/2022/225 (CONTJOR-NET) não foi aprovada nem ontem nem anteontem. Foi aprovada já no (longínquo) dia 13 de Julho. Quase três semanas antes da minha ida para supostamente conhecer a “acusação” e acrescentar elementos à minha defesa.
Reparem: o ofício da ERC convidando-me a juntar elementos ao processo tem a data de 21 de Julho (oito dias depois da já feita Deliberação), sendo que eu fui notificado apenas no dia 2 de Agosto.
Na verdade, tudo correu mal à ERC (porque até para se ser bom farsante tem de haver arte), porque alguém se “esqueceu” de retirar aquelas folhas do processo – contendo a Deliberação já feita, assinada e rubricada. Se lá não estivesse a “sentença” – que não revelarei, mas que obviamente é um “presente” para senhores como o senhor António Morais –, eu iria até pensar que estava ali, muito bem, perante um “julgamento” imparcial e sério, onde os meus direitos de defesa estavam salvaguardados.
Assim, não – descobriu-se a careca, facilmente; revelou-se uma fraude. E a fraude chama-se Conselho Regulador da ERC.
Por isso, não obstante as nulidades do processo – que ainda incluem outros elementos “estranhos” como uma numeração não cronológica dos documentos e a “retirada” de pareceres do Departamento de Análise de Media da ERC –, tem de haver outra consequência.
A podridão revelada pelas torpes condutas do senhor Sebastião Póvoas (ainda por cima juiz conselheiro), do senhor Francisco Azevedo e Silva, da senhora Fátima Resende e do senhor João Pedro Figueiredo – nas suas vãs tentativas de desacreditar e pôr na lama investigação jornalística verdadeiramente independente –, só tem uma solução: a demissão.
Nos tribunais, eu ainda poderia, além de alegar nulidade processual, suscitar um incidente de suspeição, de modo a me serem atribuídos novos juízes, verdadeiramente imparciais e idóneos. Mas como não há outros “juízes” na ERC, a não ser estes quatro, não vejo como podem eles manter-se no cargo, nestas circunstâncias, e julgarem-me ou julgarem outros.
Podem manter-se no cargo depois desta farsa, claro – que nada é escandaloso o suficiente em tempos de desavergonha. E, mantendo-se eles, podem censurar-me uma, duas, três mil vezes.
Porém, no caso de se manterem como membros da ERC, aviso já: não me defenderei enquanto as decisões partirem do senhor Sebastião Póvoas (ainda por cima, um juiz conselheiro), do senhor Francisco Azevedo e Silva, da senhora Fátima Resende e do senhor João Pedro Figueiredo. As suas censuras, para mim, serão medalhas. E a História reservar-lhes-á, por certo, um lugar no Panteão da Vergonha.