BASE DE DADOS DA MORBILIDADE E MORTALIDADE HOSPITALAR

Amigo da ministra Marta Temido “mutila” informação e serve sucedâneo para esconder caos do SNS

white and red light fixture

por Pedro Almeida Vieira // Agosto 5, 2022


Categoria: Exame

minuto/s restantes

Um discreto e diligente burocrata, que foi saltitando de administração hospitalar em administração hospitalar, até ser colocado na presidência da Administração Central do Serviço de Saúde pela ministra Marta Temido (amiga de longa data), decidiu expurgar do acesso público, em Maio passado, uma detalhada base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar. Repôs agora, mas trucidando-a em três e “mutilando” a informação, tornando-a num sucedâneo inútil. O PÁGINA UM vai recorrer, mais uma vez, ao Tribunal Administrativo, e ao seu FUNDO JURÍDICO (com o apoio dos seus leitores), para obrigar o Ministério da Saúde a disponibilizar a base de dados original.


Um carniceiro de cutelo em riste não teria feito melhor obra a despedaçar uma carcaça. Victor Herdeiro – presidente da Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS) e amigo de longa data da ministra da Saúde Marta Temido – mandou repor ontem a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, mas partida em três, com uma frequência trimestral e expurgando dados estatísticos que tornam intencionalmente a informação inútil.

Recorde-se que a retirada da base de dados original ocorreu após o PÁGINA UM ter começado a elaborar um conjunto de artigos de investigação sobre o desempenho das unidades hospitalares do SNS nos seus diversos departamentos (e doenças) ao longo da pandemia. Até Maio passado, a base de dados então existente no Portal da Transparência do SNS continha informação estatística (e, portanto, anonimizada) com uma frequência mensal e diversos campos que possibilitavam múltiplas análises: mês e ano, tipo de doenças (por grupo, incluindo covid-19), grupo etário, sexo, unidade de saúde, número de internados, dias de internamento e óbitos.

Marta Temido (ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho.

Esses dados – que então compreendiam um período mensal entre Janeiro de 2017 e Janeiro de 2022 – permitiram, por exemplo, ao PÁGINA UM concluir que houve menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a Omicron tinha indicadores de letalidade inferior aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar que estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

Ora, os serviços de Victor Herdeiro “mutilaram” completamente a base de dados, com o fito de esconder análises mais elaboradas a partir da base de dados original – que requeria conhecimentos estatísticos mais avançados –, impedindo assim a descoberta de diferenças entre a “narrativa oficial” do Ministério da Saúde e a realidade.

Um dos artigos do dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho no PÁGINA UM, com informação obtida a partir da original base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar. Com a base de dados sucedânea e “mutilada” passará a ser impossível análises similares.

Com efeito, a ACSS – que alega, na comunicação formal de Victor Herdeiro ao PÁGINA UM, que estavam em causa informação protegida pelo Regulamento Geral de Protecção de Dados (na verdade, nunca houve nomes de pessoas divulgados) – não apenas alargou a periodicidade (passando a agregar dados mensais em trimestre) como expurgou, com intenção, os dados absolutos, disponibilizando somente taxas de internamento e de mortalidade.

A utilidade desta informação é agora nula.

Além disso, a base de dados original foi partida em três completamente separadas – por sexo, por faixa etária e por instituição –, impedindo assim, por exemplo, comparações entre unidades de saúde em função do grupo etário. Algo que se conseguia antes, agora o presidente da ACSS decidiu expurgar para evidente satisfação do Ministério da Saúde, para quem a base de dados original poderia vir a fazer (mais) mossa.  

Recorde-se que os laços entre Marta Temido e Victor Herdeiro são bastante estreitos e de longa data. Ambos tiraram o curso de Direito, tendo-se cruzado nos corredores da Universidade de Coimbra, embora o actual presidente da ACSS seja mais velho (nasceu em 1969, enquanto Temido nasceu no início de 1974). No entanto, passaram a ter contactos estreitos há cerca de duas décadas, porque ambos ingressaram na carreira de administradores hospitalares.

Na Associação Nacional de Administradores Hospitalares (APAH) – uma poderosa agremiação por via das ligações políticas e dos financiamentos das farmacêuticas –, Victor Herdeiro e Marta Temido compartilharam mesmo três mandatos ao longo de nove anos: 2008-2011, 2011-2013 e 2013-2016.

Nos dois primeiros mandatos, Temido foi tesoureira e Herdeiro vogal, enquanto naquele último triénio a actual ministra presidiu à APAH, mantendo-se Herdeiro como vogal. Já sem Marta Temido nos órgãos sociais desta associação, Victor Herdeiro foi vice-presidente no mandato de 2016-2019. Ambos são também “responsáveis” pelo convite a Alexandre Lourenço para presidir à APAH há seis anos, como o próprio confessou em Março último.

Apesar desta tentativa de obstaculização ao acesso à informação e ao sinal evidente de obscurantismo da Administração Pública por conveniência política, o PÁGINA UM já solicitara expressamente ao presidente da ACSS o acesso integral à base de dados original – que continua a ser produzida mas não divulgada agora no Portal da Transparência do SNS. Como Victor Herdeiro não cedeu essa base de dados original, e já passou o prazo de 10 dias úteis para resposta, o PÁGINA UM apresentará, na próxima semana, um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo para obrigar a ACSS a disponibilizar esse conjunto de dados.

close-up photography of person lifting hands

Caso o Tribunal Administrativo de Lisboa conceda ao PÁGINA UM o direito a ter acesso à base de dados original, poderemos continuar a ter informação isenta e rigorosa. Se o Tribunal não conceder esse direito, o obscurantismo do Ministério da Saúde vence e não haverá mais informação sobre o desempenho do SNS de forma independente.


N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso oito processos administrativos e mais dois em preparação.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.