Dei por mim a pensar na caldeirada que se está a montar com a China, mas numa perspectiva mais umbiguista. Sim, em determinados momentos da vida, eu sou apenas um gajo prático que tem contas para pagar.
As sanções à Rússia – vendidas como uma medida para acabar com a guerra – serviram apenas para empobrecer quem estava do lado de cá. A estas seguiram-se os aumentos das taxas de juro e a redução dos salários por cortes directos ou pela via da inflação.
Pessoalmente, já tinha levado um corte salarial de 5% durante a pandemia (nunca reposto), e agora, por causa do “aumento dos custos causados pela guerra”, levei outro. Ou seja, desde 2020 que trabalho mais mas acabo a vender o meu esforço por menos, sem que o lucro dos meus empregadores se reduza. É uma matemática peculiar que me leva a pensar que estes dois anos e meio de confinamentos e guerras serviram, essencialmente, para reduzir o valor da mão-de-obra.
Mas não devo generalizar. Aquilo que aconteceu, a mim e demais camaradas da minha área, aqui em Gotemburgo, pode não ser um mal global. Quiçá, a maioria de vós, vai-se a ver, foi aumentado para lá da inflação. Oxalá que sim.
Mas dizia, estes dois anos e meio serviram, pelo menos, para piorar a qualidade de vida e reduzir o preço a que vendemos o nosso trabalho. No meu caso, isso é particularmente preocupante, porque não tenho, nunca tive, emprego para a vida. Tenho contratos de trabalho de 6 ou 12 meses, que são renovados consoante o meu desempenho e o estado da Economia. Como eu, estão uns quantos milhares ou milhões – não serei certamente o “inventor da roda”.
Ora, em primeiro lugar, aborrece-me que lutas entre impérios me deixem a fazer contas de cabeça sobre o mês que se avizinha.
Eu condeno a invasão russa e, de seguida, condeno as medidas cegas impostas pela União Europeia a mando dos Estados Unidos, que, essencialmente, prejudicaram os povos europeus.
A Rússia, que se financiou na União Europeia durante anos, agora vende para a Ásia; portanto, o negócio segue, e nós, que não temos nada a ver com o Donbass, ficamos a pagar a factura na energia, nos combustíveis, nos salários e na inflação.
Fosse eu um pouco mais nortenho e mandava o Putin, o Biden, o Zelensky e a von der Leyen para a puta que os pariu, mas, como tudo o que consegui foi um avô de Braga, prefiro conter-me nos impropérios.
E enquanto vamos todos fazendo uma ginástica monstruosa para compensar as decisões de uma elite milionária que nos dirige, resolvem abrir nova frente com a China, a troco de mais umas vendas aos senhores da guerra.
No caso da costa oeste sueca, do hub tecnológico que por lá se desenvolve há 10 anos, essencialmente assente em investimento chinês, isto é o prenúncio do apocalipse.
Pensando assim, de repente, nas empresas chinesas ou com capital chinês que operam em Gotemburgo, conto mais de 20 mil empregos, estando outras a chegar à região e a construir centros de desenvolvimento.
A última coisa que quero é passar os próximos anos a repetir 2020 ou 2022, porque uma cambada de velhos ricos querem brincar às cortinas de ferro com vidas humanas e abarbatar mais uns hectares de matérias-primas. Se os chineses em vez de construírem centros de engenharia e pontes em África, começarem a produzir tanques e bazucas para responder ao chamamento dos americanos, passaremos todos a ter problemas bem maiores do que ouvir o Froes a gritar por mais vacinas ou o Milhazes a ensaiar as narrativas dos 40 anos de solidão.
Reparem, aliás, no detalhe das crises. Não as vivemos todos da mesma forma. Na Alemanha, os sindicatos paralisam tudo e exigem aumentos acima da inflação – vejam a Lufthansa, por exemplo. E isto num país onde o corte de energia da Rússia está a deixar a indústria em risco. Mesmo assim, os trabalhadores são a voz mais forte. Nós, em Portugal, vamos apenas perdendo direitos, salários e condições de vida. Vamo-nos acomodando às sobras. Portanto, não estamos, nem nunca estivemos, todos no mesmo barco.
Mas se é para rebentar tudo, e largarmos os empregos e as vidas ditas normais, em nome do Apocalipse, então, se não se importam, eu gostava de decidir com quem quero ser solidário. A quem quero oferecer o esforço de ter que abdicar da vida pela qual trabalhei.
Escolheria que fôssemos bater às portas dos israelitas e mostrássemos a nossa solidariedade para com os palestinianos. Depois seguíamos a mesma estrada de pó e íamos dar uma mão aos curdos para se ver se lhes arranjávamos umas fronteiras.
Agora, para quem Taiwan fornece os chips, se a Rússia fica com a península que outrora deu como presente, ou se o gás do banho dos alemães vem pelo Nord Stream ou em barcos enviados de Boston, interessa-me muito pouco.
Em resumo, se pudessem parar de matar gente em nome dos interesses financeiros de uma elite – e, pelo caminho, arrefecer essa sede de nos irem ao bolso –, já não ficaria a faltar tudo.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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