Com uma simples deliberação, cheia de nulidades, o Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) fez o impensável num país democrático, em 2022: condenou o jornalismo de investigação.
O Conselho Regulador assumiu, numa recente deliberação irregular, as dores de quem, apresentando conflitos de interesse, tentou por várias vias silenciar o jornalista que o investigava.
Na sua deliberação, adoptada de forma opaca e irregular, o Conselho Regulador da ERC fez mais ainda. Deixou, com a sua decisão, um sério e forte aviso aos jornalistas em Portugal: podem escrever notícias, sim senhor, desde que não investiguem a fundo e não se metam com pessoas e entidades com bolsos largos, financiados por indústrias poderosas.
Esta decisão do Conselho Regulador da ERC seria triste – e até cómica – se não fosse tão grave e perigosa.
O resumo do caso é simples.
O jornal PÁGINA UM investigou a Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) e o seu presidente. Detectou conflitos de interesse e contabilizou dinheiros que entraram em caixa naquela sociedade médica.
As notícias, fruto dessa investigação, estão solidamente fundamentadas em dados e factos, que podem ser facilmente verificados por qualquer jornalista, jurista da ERC, membro do Conselho Regulador da ERC, ou cidadão.
O PÁGINA UM deu sempre a oportunidade aos visados para darem as suas versões dos acontecimentos e responderem aos factos encontrados pelo jornal.
A solidificar ainda mais o rigor, objectividade, imparcialidade e seriedade da investigação do PÁGINA UM, houve consequências materiais da divulgação das notícias sobre a SPP e o seu presidente. António Morais acabou por ser alvo de um processo de contra-ordenação e foi ainda afastado do Infarmed, onde era consultor.
Mas nem estes factos chegam para o Conselho Regulador da ERC aferir do “rigor” e precisão da investigação do PÁGINA UM e da óbvia, duplamente comprovada, veracidade dos factos e dados noticiados pelo jornal.
Não. O Conselho Regulador da ERC defende os visados pela investigação jornalística. O que o Conselho Regulador da ERC condena com a sua decisão ilegal é claro: como se atreveu um jornalista a investigar a SPP e o seu presidente?
Como se atreveu a publicar notícias rigorosas, imparciais, independentes, isentas e factuais sobre a SPP e o seu presidente?
Mas por que é que o jornal não faz como outros media e dá apenas o que vem nos press releases? Porque não disponibiliza apenas um microfone à SPP (ou outras entidades e personalidades) e passa, durante 15 a 30 minutos, a opinião da SPP, sem perguntas incómodas nem hipóteses de contraditório?
Apanhado “com as calças na mão”, por ter sido descoberto que tinha deliberado antes de o PÁGINA UM poder juntar dados e testemunhos ao processo, como está previsto no Código do Procedimento Administrativo, o Conselho Regulador da ERC entrou em pânico.
Impediu na terça-feira o jornalista e director do PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira, de consultar livremente documentos relativos a processos de interesse jornalístico, na sua sede. O director e jornalista teve de, naturalmente, chamar a polícia para apresentar queixa da ERC e fazer valer a Lei.
Os dirigentes da ERC fizeram o que é habitual em Portugal, quando se quer passar mensagens para os media e espalhar factos (verdadeiros ou falsos) e dados sem qualquer contraditório: emitiu, na própria terça-feira, um comunicado que foi instantaneamente divulgado pela agência Lusa.
Isto apesar de não se tratar sequer de uma notícia urgente.
A Lusa, infelizmente, escreveu e publicou a notícia como simples papagaio da ERC.
Não ouviu sequer o jornalista visado pelas informações falsas e difamatórias emitidas pelo Conselho Regulador da ERC. Mais. Escreveu na notícia que se trata de “um cidadão”, fazendo “corta e cola” do conteúdo do comunicado.
Só que não. Não se trata apenas de um cidadão, mas de um jornalista com carteira profissional, no exercício da sua função e a interagir de forma legítima com a entidade reguladora.
Só por isto, a Lusa merece censura e reprovação, por ir atrás do tom difamatório veiculado pelo Conselho Regulador da ERC, e difundi-lo sem a menor objetividade, imparcialidade e respeito pelo jornalista.
Não cabe à Lusa, nem aos media em geral, difundirem conteúdos ofensivos e que denigrem a imagem e reputação de alguém sem sequer ouvir o visado pelo comunicado. Mas isto é tão óbvio que não pensei que teria de o escrever aqui.
Sou jornalista há 25 anos, 11 deles na Reuters.
Jamais imaginei vir a assistir ao ataque que o Conselho Regulador da ERC está a fazer contra todos os jornalistas em Portugal.
Sim, porque este ataque não é contra um jornalista ou um jornal. É contra mim. É contra todos os jornalistas que são dignos de usar a carteira profissional.
Este ataque do Conselho Regulador da ERC à Imprensa, ao Jornalismo e, em particular ao jornalismo de investigação, só se encontra em países de má fama para a liberdade de Imprensa e para a “saúde” dos jornalistas.
Apelo, contudo, a que não se confunda os funcionários da ERC e a própria instituição com o seu Conselho Regulador. Sempre presenciei um atendimento de excelência por parte dos funcionários e técnicos da ERC. Mantenho a opinião positiva que tenho da ERC. Condeno veementemente – como jornalista e como cidadã portuguesa – a actuação do seu actual Conselho Regulador.
Perante a deliberação ilegal contra o PÁGINA UM, e o jornalismo e os jornalistas, só resta à Assembleia da República cumprir o seu dever: dissolver o atual Conselho Regulador da ERC, por se estar perante um “caso de graves irregularidades no funcionamento do órgão”.
Aprovar uma deliberação com esta gravidade, contra a liberdade de Imprensa, actuando de forma, no mínimo, irregular. Adotar a deliberação sem permitir obrigatoriamente que o PÁGINA UM juntasse dados e testemunhos ao processo, demonstrando com isso a sua incompetência e má-fé. Fazendo-se de “vítima” após ser apanhado nestas irregularidades. Difamando, de seguida, o jornalista através de um comunicado de imprensa.
Por tudo isto, só resta a dissolução urgente do Conselho Regulador.
Não tem quaisquer condições para se manter em funcionamento com os seus atuais membros. Perdeu toda a credibilidade. Constitui uma ameaça aos jornalistas e à Imprensa. Constitui uma ameaça à própria ERC, à sua reputação e bom nome.
Não o fazendo, os partidos e os deputados com assento parlamentar consentem que seja destruído o jornalismo de investigação, e que os jornalistas fiquem sob a ameaça de serem um dia processados por fazerem o seu trabalho. Só isso. Simplesmente por isso. Por terem a “ousadia” de fazerem jornalismo.