CRÓNICAS DE UM OFÍCIO SANTO

Estranha forma de vida

minuto/s restantes


A exposição frequente a um determinado estímulo gera tal familiaridade que nos vemos conduzidos a uma mudança de atitudes, na forma de preferências e afectos. Esta preferência é acima de tudo emocional e forma-se ao nível do subconsciente, ou seja, antes de se ter consciência dela.   

Mas, antes de mais, ilustremos esta ideia com uma breve história.  

six leafy vegetables

Um homem muito rico desejou ser eremita e, por isso, foi viver para o deserto. Queria libertar-se do trabalho, das pessoas, da loucura social. Isolado e sem ter onde comprar alimentos, decidiu cozinhar um caldo com diversos tipos de ervas que foi encontrando aqui e acolá.

Depois de muitas horas de colheita, ferveu a água e acrescentou-lhe os poucos ingredientes que colhera. Finalmente, depois de cozinhado o caldo, ao levantar a tampa para cheirar o paupérrimo manjar, um gafanhoto saltou para dentro da panela. Enojado, apagou as brasas, deitou a sopa fora e, nesse dia, fez jejum.

No dia seguinte, desejava um caldo e, por isso, repetiu o mesmo cerimonial de recolha e confeção. Mas, cada vez que cozinhava, havia um gafanhoto a invadir-lhe a panela. Certa vez, aborrecido e cansado de desperdiçar a sopa, decidiu retirar o insecto com a concha e mesmo assim comê-la. Aquele gesto passou a ser rotina, pois percebeu que se assim não fosse acabaria por morrer de fome. 

Pergunto-me se não será isto mesmo que acontece connosco quando crescemos e nos familiarizamos com o que está (e o que acontece) à nossa volta, desde a mais tenra idade. Comparemos, neste contexto, a vida a uma representação teatral.

red theater curtain

As pessoas, ou melhor, os “actores”, procuram deixar uma impressão favorável de si mesmos mediante a sua personagem, fazendo a distinção entre aquela que é a zona de cena e os bastidores. Naquela existe um público para quem representamos e de quem esperamos aplausos. Nos bastidores, “desmanchamos” a nossa personagem, andamos sem maquilhagem, sem roupas exuberantes e estamos despreocupados. 

Para quem já esteve em cena, num palco a sério, sabe o quão exigente pode ser aquela circunstância. O desconforto das luzes que batem nos olhos, a permanente colocação da voz, os movimentos repetidos que não podem ser esquecidos, os textos, os imprevistos e acima de tudo, a expectativa acerca da reação do público.  

Num exercício rápido e atento sobre o que nos rodeia, percebemos que não somos nós a escrever a peça, que em vez de “actores principais”, somos, na maior parte das vezes, “actores secundários” num espectáculo triste e amargurado por falta de público que aplauda. Percebemos que não há quem encontre o guião e que o palco carece de espaço para que todos brilhem em cena, simultaneamente. 

Nos bastidores, encontramos gente cabisbaixa, deprimida, frustrada, drogada.  

gold and black dragon figurine

Aparentemente, ninguém nos explicou, desde cedo, que não se trata de representação teatral alguma, mas sim de viver uma vida livre e completa. Ninguém nos ensinou o quão bom é sentir cada beijo, cada respiração, cada abraço de forma plena e espontânea.  

As religiões e a moral são acusadas de serem castradoras da felicidade. Porém, aqueles que nos rodeiam não param de nos gritar que subamos ao palco, que repitamos cenas, uma e outra vez. E de tanto repetir, passamos a acreditar que, de facto, há um público à nossa espera, à espera de que sejamos alguém que ninguém sabe quem é… 

Voltando à história do eremita: conta-se que este, a partir de certa altura, passou a procurar gafanhotos para com eles fazer sopa, até ao final da sua vida.  

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.