[notas “quase arquivadas”, que publicamos em sentida homenagem ao povo da Beira pela catástrofe que o atingiu, quinze anos depois de estas terem sido redigidas]
Este texto não resulta de uma investigação. Quando muito, decorre de algumas reflexões praticadas em função de uma vontade de efectuar uma pesquisa. O seu objecto central é o cinema. Não os filmes, não os textos singulares, ou qualquer corpus singular que os inclua.
Pretende, sobretudo traçar as linhas muitos gerais relativas à possibilidade de reflectir sobre o cinema enquanto fenómeno cultural. Não apenas sobre a existência do cinema enquanto conjunto de películas, textos e de discursos recebidos pelos espectadores, mas também sobre o cinema como sistema de produção e circuito de distribuição.
Sentimos a necessidade de determinar, desde já, dois elementos constituintes do objecto cultural que temos em vista: o objecto discursivo que entendemos por cinema, encarando o fenómeno na sua máxima generalidade; e o tempo/espaço como unidade delimitante em que decorre ou se manifesta esse fenómeno. Parece-nos que o segundo elemento é o que deve ser esclarecido em primeiro, no discorrer das nossas perplexidade, dado que este se nos afigura como termo motivador principal destas notas que têm em vista estruturar uma base para futuras pesquisas.
Assim, tal como fica indicado, logo à partida, pelo título desta nossa exposição, o local onde centramos a nossa atenção é uma pequena parcela do território Moçambicano, a cidade da Beira.
Curiosamente, do ponto de vista cultural que aqui nos importa, esta é uma das poucas localidades importantes do país que não mudou de nome depois da independência. No entanto, é importante precisar, para tornar mais clara a nossa exposição, que o período histórico a ter em conta como momento cultural, é da fase final do domínio colonial português. Um momento de crise ideológico-político-militar que é importante ter em conta como unidade específica dentro da formação discursiva que a ocupação colonial gerou.
Quanto ao cinema, sem nunca perdermos de vista o espaço africano a que fazemos referência, tem tantas acepções, hoje em dia, que se torna necessário esclarecer, desde o início da nossa reflexão, qual é a acepção em que o tomamos quando falamos dele (cf. Fárid Boughedir, 1974: 123, in Présence Africaine, nº 90).
De facto, o cinema tem sido qualificado como arte, indústria, comércio, meio de expressão, meio de informação, meio de educação. De um modo geral, ele é tudo isso, mas, para um cineasta, crítico e comentador com foros de teorizador como Boughedir, de origem tunisina, o cinema deve ser encarado, sobretudo, pelo seu “aspecto educativo, quer dizer, tendo em conta o seu efeito sobre o público” o que o leva a considerar que há dois géneros de cinema: “o que faz evoluir o espectador no sentido do progresso e o que o faz estagnar cobrindo-o de mentiras” (p.123).
Do nosso ponto de vista, o que importa sublinhar, tendo em conta as nossas próprias indagações, é a sua dimensão de arte. Não colocamos a óptica, evidentemente, no lado selectivo e até elitista que tal conceito arrasta, mas enfatizamos, antes, o lado de linguagem elaborada, de linguagem de modelização secundária (segundo o conceito de Lotman) que o cinema tem primordialmente.
É num momento posterior, decorrente do reconhecimento que cinema funciona, sobretudo, como construção representativa altamente elaborada, que nos parece importante colocar a tónica da sua relação com os públicos que atinge. É claro que, colocando ênfase nessa dialéctica entre a representação ficcional (mais ou menos fantasmática, ideologicamente alienante) e a função educativa, abrimos o debate fundamental que se trava entre o discurso persuasivo das classes e dos grupos dominantes e réplica mais ou menos activa e consciente dos destinatários.
Nem sempre, contudo, o encontro ou desencontro de opiniões ou de imaginários é fácil de delinear. Como sustentam Ella Shoat e Robert Stam “o cinema” sobretudo o de Hollywood, combinava a narrativa e o espectáculo para contar a história do colonialismo da perspectiva do colonizador” (2002).
Por outro lado, um dos horizontes mais antigos e constantes que se manifesta no discurso de resistência ao colonialismo, o que se pretende reforçar, do ponto de vista do colonizado, é a representação da sua autenticidade, dos seus valores, dos princípios que o fortalecem na sua humanidade e que o tornam um sujeito integral no interior da sua cultura. Admitindo que estes são os pólos da questão, interessa sublinhar, desde já, que o seu delineamento não fácil. E talvez não seja possível. De qualquer modo, a nossa intenção quanto a essa matéria, aqui, é ter a noção desses traços discretos da contradição ou do confronto. Apesar disso, não tentaremos colocá-los, pelo menos no seguimento desse confronto, na nossa argumentação.
O fio da nossa reflexão desenvolve-se num terreno mais indefinido. Não porque preconizemos contemporizações, mas porque nos importa interrogar alguns dos matizes segundo os quais o confronto se dá ou o debate emerge na formação discursiva colonial, no momento histórico discreto, perceptível, em que a dominação política colonial enfraquece. É um momento curioso. Não damos por ele no momento.
Ninguém podia assegurar, na véspera do 25 de Abril, que este ia acontecer. Por outro lado, as dinâmicas político militares e os discursos ideológicos e culturais que os acompanhavam, não se encaminhavam para esse momento. As frentes de batalha estavam desenhadas quando o 25 de Abril, no interior das hostes ocupantes, revelou quão profunda era a fractura nele inserida.
No caso específico de Moçambique, e, muito em especial, no espaço cultural da cidade da Beira, registam-se vários fenómenos que nos permitem interrogar a variação cultural que o cinema introduziu na dinâmica ideológica. À superfície, a cidade da Beira é constituída por uma classe dominante liberal. Mesmo nos momentos mais árduos da defesa dos bastiões coloniais, os grupos sociais que constituíam a classe média alta da cidade revelavam-se bastante liberais.
Não se defendia abertamente o regime, o discurso anti-salazarista era bem tolerado e as instituições culturais permitiam a emergência pouco dramática dos discursos da oposição. É claro que, por coerência interna do apoio à defesa das “províncias ultramarinas”, não eram permitidas simpatias de qualquer espécie pelos grupos “terroristas”, ou pelos “agentes da desordem”. Não era pensável defender abertamente a Frelimo, por exemplo. Mas por virtude da sua própria hipocrisia, o discurso oficial dominante não podia impedir, por exemplo, que fosse defendido o anti-racismo e que o apartheid da África do Sul fosse condenado.
Numa situação oficial, na presença de uma autoridade em funções, a África do Sul não poderia ser condenada. Contudo, em situações menos oficiais e mesmo em intervenções oficiosas, em crónicas jornalísticas, por exemplo, esse ataque, desde que não fosse hiperbólico ou disparatado, era possível.
Por outro lado, a África do Sul, com os seus princípios anglo-saxónicos, com muito prestígio da dimensão liberal “anglo”, sobre o puritanismo mais estreito dos Boers, era apologista de uma fruição cultural sem barreiras. Assim, por exemplo, para regressarmos ao objecto da nossa abordagem, o cinema que passava pelas salas das grandes capitais da África do Sul, os filmes que circulavam nos seus cine-clubes, eram obras que, no entender da vigilância censória, não podiam entrar em Portugal. Só não podiam, na nação austral, era ser francamente anti-apartheid.
Ora, um fenómeno curioso que se dava em Moçambique era a circunstância de os filmes serem importados directamente da África do Sul, aproveitando o circuito de distribuição que a alimentava, sem passarem pelo mecanismo censório que imperava em Portugal. É verdade que existia uma censura em Moçambique, mas ela funcionava de modo local.
Os filmes eram censurados por habitantes de Lourenço Marques e da Beira, sobretudo, que eram cidadãos do mesmo nível e estrato social a que pertenciam os espectadores. Se tivermos em consideração que o público dominante dos cinemas é, na altura, uma classe que se pode considerar de elite, constituída, sobretudo, por cidadãos “brancos” ou por alguns raros elementos de origem africana, ou negra, ou mesmo miscigenada, pertencentes a uma burguesia de quadros qualificados, percebemos que os valores em causa, quando se tratava de cinema, eram bem diferentes dos que vigoravam em Portugal.
Esquecemos, neste olhar em que apresentamos quase um idílico falanstério tropical − constituído pelas classes médias cosmopolitas, dependentes do colonialismo, mas sem o apoiarem directamente, ou, pelo menos, abertamente −, as classes populares, as de pé descalço, as dos maltrapilhos, operários, tarefeiros, serviçais e desempregados que, por não corresponderem aos princípios do “direito de admissão”, nem sequer se aproximavam dos cinemas.
Não falamos do cinema suburbano e itinerante que os servia, porque mal o conhecemos: apenas a referência de alguns amigos que o frequentaram, brancos como o poeta Rui Nogar, ou “pessoas de cor” como José Craveirinha, nos permite fazer ideia dele. Por caricatura, a partir da factualidade, e para servir de exemplo, podemos dizer que entre os filmes (da verdadeira e genuína série B, então) mais projectados entre os “autóctones” constavam, como clássicos, os que tinham como herói Tarzan.
Estamos a falar de um mundo ou de um país onde a representação da vida real da maioria da população não se praticava. Nem mesmo em documentários, como posteriormente foram feitos ainda que de modo insuficiente, pelo governo que liderou a independência.
Um filme, como o de Sarah Maldoror, Sambizanga (1972), sobre a luta de libertação, era impensável então nos cinemas africanos na Área de influência em que Moçambique colonial se inseria. Mesmo mais tarde, essa obra importantíssima, que tão carinhosamente foi promovida pela Frelimo, não teve a importância cultural generalizada que merecia.
Mesmo para os cidadãos das classes menos desfavorecidas, nas quais nos podemos incluir, como cidadão residente na Beira, na época, jornalista a tempo inteiro e crítico de cinema, dentro das atribuições profissionais, Moçambique, no cinema ou na imagem “cinematográfica” não existia quase. Algumas reportagens de acolhimentos a “autoridades da Metrópole”, eram as que mais fielmente apresentavam a população. Sempre festiva e de aspecto “despreocupado”, nunca faminta ou carente.
A ficção cinematográfica, é verdade, glorificou Moçambique. Sem um único exterior local, a película Chaimite, de Brum do Canto (1952), constrói aquele que podemos considerar o maior filme épico português. Moçambique está lá. Talvez também lá esteja uma parte da alma Moçambicana. Gungunhana é maltratado, mas, pelo seu peso histórico especifico, ainda hoje pode justificar uma recuperação crítica do filme. Mas esta não se pratica. É uma presença fantasmada. Como o Moçambique representado é apenas uma alusão de localização.
Dos moçambicanos contra os quais se bateu Mouzinho de Albuquerque apenas temos as sombras. Sombras de guerreiros caricaturadas… de algum modo, curiosamente, ensombrando as glórias portuguesas. Podemos, ainda hoje, lamentar que esse filão épico não tenha sido explorado.
Parece que faltou aos defensores da pátria portuguesa, nos seus melhores momentos artísticos, todo o ambiente cultural, a profunda vivência de uma má consciência com a que se desenvolveu num John Ford, por exemplo. Manoel de Oliveira vem, em visões africanas obtidas em exteriores do Senegal, reevocar, por vezes de modo muito produtivo, essa dimensão da épica. Mas o que ele nos apresenta é uma “África” colonial portuguesa, não este território ou aquele. Ele fala mais da essência da guerra do que do fenómeno conflitual e dos labirintos da sua continuidade. E filma África no Senegal…
Neste ponto, tocamos no centro nevrálgico da questão que se coloca a um cinema moçambicano, o das suas faltas estruturais. Do colonialismo herda-se pouco. Herdam-se perdas, sobretudo. As heranças são mais as dívidas do que as estruturas. E quanto mais pobre a Metrópole, menos são as possibilidades do futuro… Talvez seja isso que nos explica a razão pela qual um cineasta como Rui Guerra, que constou desde o princípio entre os maiores do Cinema Novo Brasileiro, se “afastou” de Moçambique.
Não pretendemos analisar o fenómeno mas apenas registá-lo. Não foi, de certo, pela falta de simpatia do cineasta pela revolução moçambicana, nem pelo desinteresse dos dirigentes moçambicanos, que a aproximação não se deu. Nem pela falta de interesse de um público de língua portuguesa interessado no cinema… Mal ou bem, a um Sembéne Ousmane foi possível migrar da literatura para o cinema, no Senegal… porque herdou uma estrutura diferente: a não menos colonial, mas mais poderosa máquina de produção francesa.
Notemos, no entanto, que a actividade cultural em torno do cinema não era nada conformista, no tempo da ocupação colonial, mesmo no auge da guerra ou ainda quando esta já era desfavorável ao regime português. Quatro cinemas, em várias sessões diárias, chegam a alimentar os lazeres ou os interesses culturais das classes sociais menos desfavorecidas, vivendo das benesses do seu estatuto social.
Nós próprios praticámos uma crítica de cinema constante no jornal Notícias da Beira. O director do jornal (F. Gomes) era sócio maioritário da empresa proprietária dos cinemas, e seu administrador…
Tivemos confrontos e desentendimentos, tentou ameaças, mas nunca me demitiu da função. Rui Nogueira escrevia crónicas de Cinema que publicava na página cultural que era dirigida por mim… e não defendia os filmes que mais interessavam comercialmente. A sua actividade nunca cessou, até ao momento em que foi possível manter colaboradores (não o era depois da Independência).
A crítica de cinema já era uma tradição no jornal, iniciada, com total independência e isenção por Rui Coelho de Campos, que deixou de a fazer por ter regressado definitivamente a Portugal, quando comecei a fazê-la. Manteve-se, até depois da independência, quando a sobrevivência do Jornal já não era possível nos mesmos moldes. Era quase uma instituição cultural.
Também o cine-clube, do qual fiz parte, com sede no Auditório à Beira do Chiveve, promoveu as sessões de cinema mais ousadas que era pensável ousar em território português: Ciclos de Eisenstein, por exemplo!…
Promoveu festivais de cinema em que o inconformismo político, cultural e ideológico era um dos grandes valores. Vasco Branco, por exemplo, concorreu mais do que um ano a esse festival. José Cardoso, durante muitos anos dirigente do INC de Moçambique, depois da independência, cineasta amador anteriormente, à data em que elaborámos estas notas preparava-se para publicar as suas memórias cinéfilas. Aguardamos a possibilidade de as conhecer. São três volumes com profusas informações sobre o cinema que existiu… não existiu… devia ter existido… em Moçambique.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora