BASE DE DADOS DA MORBILIDADE E MORTALIDADE

Tribunal decide se amigo de Marta Temido repõe versão original (que “mutilou” para impedir investigações do PÁGINA UM)

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por Pedro Almeida Vieira // Agosto 19, 2022


Categoria: Exame

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Depois de dois processos contra o Ministério da Saúde (um dos quais em “representação” da Direcção-Geral da Saúde), de mais dois contra o Infarmed e de mais um contra a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, o PÁGINA UM decidiu apresentar uma nova intimação desta vez contra a decisão da Autoridade Central do Sistema de Saúde. Em causa está o “expurgo” da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, que foi retirada em Maio passado do Portal da Transparência, após o PÁGINA UM ter publicado investigações comprometedoras. A base de dados foi “reposta” no início deste mês, mas completamente “mutilada” , impossibilitando qualquer análise séria que possa, por exemplo, explicar as causas para o excesso de mortalidade em Portugal desde finais de Fevereiro.


Vítor Herdeiro, amigo de longa data da ministra da Saúde e presidente da Administração Central do Serviço de Saúde, vai ter de justificar junto do Tribunal Administrativo de Lisboa as razões para a retirada da base de dados original da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar que constava do Portal da Transparência do SNS.

Esta é a consequência imediata do processo de intimação apresentado hoje pelo PÁGINA UM – o sexto envolvendo o Ministério da Saúde ou entidades tuteladas pela ministra Marta Temido – que tem, como objectivo primordial, a reposição da base de dados que permitia uma avaliação rigorosa do desempenho do SNS durante a pandemia, auxiliando também a perceber quais as doenças que estarão a causar um excesso de mortalidade desde finais de Fevereiro.

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Como denunciou o PÁGINA UM em editorial no dia 16 de Junho, o Ministério da Saúde decidiu “expurgar” a base de dados com informação mensal desde Janeiro de 2017 sobre o número de internamentos e de óbitos, envolvendo 62 unidades do SNS, desagregados por sexo (dois) e por grupo etário (sete). Essa base de dados, que em Janeiro deste ano contava 440.036 linhas de informação, permitira ao PÁGINA UM elaborar um dossier específico de oito artigos, entre 13 de Maio e 1 de Junho, que mostrava uma situação muito distinta da “narrativa oficial” quanto aos números da pandemia e sobre o desempenho das diferentes unidades hospitalares mesmo em relação a outras doenças.

Esses dados permitiram, por exemplo, ao PÁGINA UM concluir que houve menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a Ómicron tinha indicadores de letalidade inferior aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar que estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

Um dos artigos do dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho no PÁGINA UM, com informação obtida a partir da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, agora “apagada”.

O ministério liderado por Marta Temido nunca assumiu terem sido razões políticas, em resultados das investigações do PÁGINA UM, a determinarem o “apagão” da base de dados, embora haja uma coincidência entre a decisão de retirar essa informação do Portal da Transparência e a publicação dos primeiros artigos noticiosos.

A ACSS adiantaria, mais tarde, como causa do “expurgo”, a necessidade de uma “análise interna”, mas nunca explicou cabalmente qual o propósito.

Certo é que após um pedido expresso do PÁGINA UM para acesso à base de dados original, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), Vítor Herdeiro decidiu em 5 de Agosto repor no Portal da Transparência um “sucedâneo” da base de dados, mas que constitui uma autêntica mutilação da versão pública original, tornndo-a inútil.

Com efeito, a base de dados original foi partida em três completamente separadas – por sexo, por faixa etária e por instituição –, impedindo assim, por exemplo, comparações entre unidades de saúde em função do grupo etário.

Também ficou impedido de se conhecer os números absolutos de internamentos e de óbitos em unidades de saúde por tipologia de doença, impossibilitando apurar-se que tipo de doenças estarão a tornar-se mais mortíferas desde finais de Fevereiro, quando Portugal iniciou um período sem precedentes de contínuo excesso de mortalidade.

A intimação agora apresentada ao Tribunal Administrativo de Lisboa pretende assim que, independentemente de Marta Temido concordar com a “mutilação” da base de dados agora exposta no Portal da Transparência do SNS, a versão original seja disponibilizada ao PÁGINA UM. Isto é, o objectivo é o Tribunal sentenciar o amigo da ministra da Saúde a entregar obrigatoriamente a base de dados original (existente antes e existente agora) da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar – que esteve disponível ao público até Maio deste ano – ao PÁGINA UM.

Se o Tribunal Administrativo de Lisboa condenar a ACSS a entregar essa base de dados original, o PÁGINA UM compromete-se a disponibilizá-la imediatamente no seu site. E continuará a dissecar essa informação – vital para compreender o excesso de mortalidade em curso –, sob a forma de análises e notícias rigorosas e isentas.

Saliente-se que a intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões é um processo considerado e, por isso, os prazos são curtos. A entidade pública responsável dispõe de 10 dias para responder, e o juiz deve decidir em cinco dias, embora possam ser pedidos mais informações.

Marta Temido (ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. Foram companheiros durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

Caso a entidade pública continue sem satisfazer o pedido, após intimada pelo tribunal para o fazer, o juiz deve determinar a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias, sem prejuízo da responsabilidade (civil, disciplinar, criminal) a que possa haver lugar.

Além dos seis processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboam envolvendo entidades públicas na área da Saúde (Ministério da Saúde, Infarmed, Inspecção-Geral das Actividades em Saúde e agora AACS), o PÁGINA UM tem ainda em curso mais três acções similares (satisfação de pedidos de acesso a documentos administrativos) sobre a Ordem dos Médicos, Ordem dos Farmacêuticos e Conselho Superior da Magistratura (CSM), tendo já vencido duas acções em primeira instâncias. Porém, nesses dois casos, as duas entidades (CSM e Ordem dos Médicos) recorreram da decisão para o tribunal superior, demonstrando uma cultura pouco atreita à transparência.


N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso oito processos administrativos e mais dois em preparação.

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