Cânone P1

Almeida Faria

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Quando, em 1962, Almeida Faria, nascido em 1943, publicou o seu primeiro romance, Rumor Branco, a opinião da crítica em geral foi a de um entusiasmo sem reservas. Não existe uma só nota de reserva, entre os vários comentários que, por essa altura, eram dignos de respeito. Entre os leitores mais atentos de então o romance foi considerado uma obra profundamente inovadora nas nossas letras.

A maior parte dos estudiosos e críticos que, na década de 60, deixaram a sua opinião registada sobre o primeiro texto que Almeida Faria publicou, contam-se leitores exigentes como Vergílio Ferreira, Alexandre Pinheiro Torres e Leodegário de Azevedo Filho. Não obstante a frontalidade com que os dois primeiros discordavam, por razões históricas e culturais várias e complexas, ambos colocaram, desde logo, o romance Rumor Branco entre as grandes obras que aquela década vira nascer.

Almeida Faria nasceu em 1943.

A Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu-lhe, nesse mesmo ano, o Prémio Revelação. Na sua apreciação do mesmo texto de Almeida Faria, publicado alguns anos mais tarde, Leodegário de Azevedo Filho afirma: “Rumor Branco é, antes de tudo, uma experiência de linguagem, colocada em plano estético e capaz de trazer novas energias ao género”.

O carácter profundamente inovador das narrativas de Almeida Faria, que publicou o romance já referido com 19 anos de idade, foi sobejamente enfatizado por Vergílio Ferreira, e confirmado por Óscar Lopes no prefacio ao segundo romance do jovem autor, A Paixão,publicado três anos depois. Uma assimilação profunda, inteligente e criativa dos mais ousados códigos regeneradores criados pela narrativa modernista que então se colocava na vanguarda, era reconhecida por todos os críticos e historiadores literários de então.

De facto, embora se situasse abertamente num campo temático e de referências através do qual os seus romances se mantinham próximos do neo-realismo, Almeida Faria desenvolvia francamente a sintaxe narrativa e a perspectiva lírica da enunciação romanesca segundo novas influências onde se destacavam sobretudo os processos de criação poéticos típicos de Proust, de Joyce, de Faulkner e de alguns mestres do nouveau roman.

Embora a vertente lírica da narração tivesse sido o aspecto que mais marcou a sua escrita nos primeiros textos que publicou, aspecto que, provavelmente, terá levado Vergílio Ferreira prefaciar-lhe a primeira versão de Rumor Branco, a criação poética de Almeida Faria não se manteve numa fórmula fixa de procedimento romanesco.

A revisão profunda que faz ao seu primeiro romance e a escrita de Cortes, romance onde parece desenvolver uma deliberada secura verbal por oposição à discursividade através da qual a dimensão passional e irracionalizante se tornava dominante na sua primeira produção romanesca, revelam uma preocupação do escritor em renovar a sua poética.

Essa nova fase de escrita, que ele assume como “libertina”, expressa como programa mais evidente a vontade de retomada de valores filosóficos e estéticos que se reportam à grande produção romanesca do século XVIII.

Rumor Branco foi publicado originalmente em 1962.

Está em causa, evidentemente, um programa de criação poética que, sem se ligar excessivamente à tradição mais banalizada do realismo, na continuidade do romance realista oitocentista, retome alguns dos processos esquecidos das fontes do racionalismo europeu, funda a modernidade, com duas linhagens que o modernismo esqueceu: a do romance de aprendizagem e a da narrativa libertina.

Nesta última dimensão, podemos dizer que a sua obra se desenvolve unitariamente num ciclo ou trilogia, a que chamou Lusitana e que se compõe de três romances: Cortes (1978, prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciências de Libo – prefaciado por Manuel Gusmão em 1986), Lusitânia (1980, prémio D. Dinis, da Casa de Mateus, prefaciado por Luís de Sousa Rebelo) e Cavaleiro Andante, (prémio Originais de Ficção da APE).

Considerando, no entanto, a produção da obra de Almeida Faria como um conjunto unitário, não nos devemos deixar arrastas por um simplismo que deixe supor dois ciclos claramente distintos: um, inicial, em que o corpus seria a própria linguagem, tomada como objecto, e outra em que a história contada se revelaria a matéria mais importante.

De facto, a evolução de Almeida Faria, problematizando as relações entre as histórias contadas, a linguagem em processo, a voz narrativa e a historicidade em que a produção se afirma, é fundamentalmente a de um discurso literário em permanente interrogação dos valores que mobiliza a vários níveis. Estão sempre em causa, nas suas obras, as relações que a produção literária estabelece com o universo social em que emerge, convocando, frontalmente, quer os valores ideológicos que se apresentam como tradição, quer os que emergem como questionamentos desses mesmos valores.

É desse modo que, por exemplo, Óscar Lopes o vê, em 1963, logo na data de publicação do seu primeiro romance. Ultrapassando a novidade espectacular que a nova escrita propõe, com as suas rupturas, quer em relação à gramática da narrativa quer à da sintaxe ou mesmo à da ortografia, o crítico português reconhece que o romance “exprime (…) um movimento geral de assimilação e crescimento integral humano”. Reconhece ele, no processo fabulatório, a base expressiva dos “termos religiosos da tradição cristã” em fusão com a “divinização da ansiada unidade amorosa”.

A ligação desta problemática com a da dimensão social, ou mesmo sócio-política, torna-se mais evidente no romance seguinte: a Paixão. Romance em que a multiplicidade das vozes se cruza num modelo que, resumidamente, poderíamos dizer remeter para o As I Lay Dying, de Faulkner, nele se expressa “o sonho prometeico, ou luciferino, da omnipotência humana” o qual, nas palavras do mesmo Óscar Lopes, que vimos citando livremente, “é comum a todas as mitologias”. Por isso, Almeida Faria o lê na ressurreição que evoca como sequência da “Paixão”, que ele vê, no plano da História, como síntese de todos os sofrimentos, partilhas e compaixões fraternas.

A Paixão, segundo romance de Almeida Faria publicado em 1965.

O romance seguinte, Cortes, pode ser entendido, a partir do seu título, em três dimensões distintas: uma que tenha como objecto central a obra do autor; outra que o encare como um  índice a acirrar do modelo das múltiplas vozes e perspectivas que, ao contrário de A Paixão, não se encontram em comunhão, mas sim em confronto; e uma terceira que assuma o título a partir do próprio nível elementar da escrita – ou seja, propondo uma passagem de um discurso emotivo, marcado pela passionalidade e até por um fluir verbal ao sabor do dizer como prazer da dicção, para uma escrita vigiada, avara, racionalmente vigiada.

Digamos que a segunda perspectiva é a que poeticamente se revela mais interessante. Porque conceptualiza o sentido de “corte” como “discurso de ferida ou de violência que a ruptura provoca” e, segundo Maria Alzira Seixo, dado que, por esse mecanismo, “cada capítulo funciona, não como um degrau narrativo (…) mas fundamentalmente como espaço da contra-di(c)ção que em si desenha (…) oposições significantes” (Seixo, 1986: 194), tal perspectiva é a que mais amplamente revela o processo criativo.

É segundo esta reformulação da multiplicidade de perspectivas e vozes que a obra de Almeida Faria acaba por se desenvolver, em direcção ao projecto “libertino”, segundo o qual as racionalidades emergem como “re-corte”.

Decorre desta vontade poética, pensamos, a terceira perspectiva por nós proposta, de encarar uma mudança, ou inflexão, na obra do autor, em direcção a modelos sintáctico-discursivos mais regulados pela racionalidade, abandonando registos que, por simplificação, poderíamos designar como imitadores dos processos da “corrente de consciência” ou mesmo do fluir de uma verbalidade pré-consciente ou mesmo, por sugestão figurativa, inconsciente.

Contudo, parece-nos digno de nota que, por recurso analógico, ou seja, de lançar mão à metáfora, se possa entender o “corte” como o processo segundo o qual o autor procura “arrumar” a sua obra em “logias”.

Primeiro, projectando uma trilogia da Paixão de que Cortes seria o segundo volume (e A Paixão o primeiro, obviamente); depois, enveredando por uma decisão editorial de fazer a Trilogia Lusitana, acaba por arredar A Paixão, como elemento central, dando nome ao conjunto, acabando por encerrando a série, já tetralogia, com O Cavaleiro Andante, depois do romance Lusitânia, com o qual pensara, primeiro, encerrar a série.

Poderíamos um dia, num outro espaço e lugar, interrogar o jogo de paixão e de corte que tal ajustamento representa na obra do autor. Ou então o que representa uma hesitação entre uma Tetralogia Lusitana, incluindo A Paixão, e a Trilogia Lusitana, que, como tal, foi publicada.

De qualquer modo, todo um processo de transformação do conjunto se continua a desenvolver com a produção e publicação dos volumes seguintes. Cada um deles gera novos projectos e amplia a matéria romanesca começada em A Paixão: desenvolvimento de uma história familiar que se prolonga e transformação dos processos poéticos que a dá a ver.

Publicado em 1980, Lusitânia recebeu o Prémio Dom Dinis da Fundação da Casa de Mateus.

Efectivamente, em relação à matéria ficcional criada, o que se dá é o processo já não apenas do corte mas, mais acentuado, o do afastamento. Lusitânia, segundo volume da trilogia (terceiro da tetralogia, se esta existir no projecto autoral), aponta-nos, pelo próprio processo de representação textual escolhido – a troca de cartas entre as várias personagens, confronto de discursos à maneira setecentista de um Laclos, por exemplo – a distância que separa as personagens de uma “Lusitânia” em diáspora.

Os discursos cruzam-se entre Portugal, Itália e Angola. Em Portugal a correspondência tenta superar a distância entre Lisboa e Montemínimo.

A partir de Lusitânia, mas ainda dentro da unidade “tri” ou tetralógica, a temática deixa de ser estruturada no sistema dominante do discurso cruzado. A errância passa ser o modelo formal do processo romanesco. A distância, a ruptura, a perda ou o estado de exílio fazem-se representar por um processo que poderia ser designado pelo título do último volume – até à data, claro, nada impede que um outro surja, um dia – do conjunto: O Cavaleiro Andante.

Curiosamente, este último texto pode ser assimilável, por alguns dos processos formais que desenvolve, à última obra romanesca publicada pelo autor até à data: O Conquistador. Dado que este texto, quanto à matéria, já não se integra no ciclo “lusitano” dos anteriores, poderemos pensar num próximo ciclo romanesco, como que em secância, recortando-se a partir do anterior? Talvez. E é, julgamos, a capacidade de produzir uma obra em permanente estado de formação estrutural e abertura inovadora que tem caracterizado a imensa qualidade da produção de Almeida Faria.

Um dos aspectos que mais insistentemente tem atraído a atenção dos críticos que se debruçam sobre a obra de Almeida Faria decorre, como consideração generalizadora, dessa qualidade. Para quase todos, este autor que, desde o primeiro momento, Vergílio Ferreira reconheceu como imensamente prometedor, tem apresentado o encanto do grande desafio que é a criação de um universo através do qual o destino do homem se interroga, originando, ao mesmo tempo, um modelo representativo, uma linguagem poética que questiona e reactiva os processos de a literatura se fazer.

Podemos assinalar ainda, como trabalhos seus de importante projecção cultural, o conto Os passeios do sonhador solitário (1982), devaneios, à moda iluminista de Rousseau, como ela próprio reconhece, a partir da pintura de Mário Botas, uma quase que ekfrasis com subtítulo Conto e Libreto; o ensaio de apresentação de Spleen de Mário Botas, “Do poeta-pintor ao pintor poeta”; duas peças de teatro, A Reviravolta, 1999 e Vozes da Paixão, 1998, versão teatral do seu romance, Paixão; e vários textos de intervenção sobre a literatura e a cultura portuguesa publicados em volumes colectivos e jornais.

Autor com uma carreira plena, tendo interrompido a escrita de ficção numa idade em que muitos outros estão quase no começo, Almeida Faria pode ter ainda algo a acrescentar à sua obra. Seja o que for, pelo que já é patente, será sempre um elemento importante na literatura portuguesa – por alargamento, uma peça considerável da nossa cultura.

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

Seixo, Maria Alzira, 1986, A palavra do romance, Horizonte, Lisboa

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