A lei obriga à escolha de um jurista de mérito, mas o currículo de Licínia Girão para presidir à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) está longe de ser excepcional. Advogada-estagiária aos 57 anos, concorreu nesta Primavera ao concurso para formação de magistrados, e os resultados dificilmente poderiam ser piores. Ninguém quis assumir ao PÁGINA UM como chegou ela à presidência do órgão que regula e disciplina os jornalistas.
Reprovada sem apelo nem agravo. Eleita em Maio passado para a presidência da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) por alegadamente ser uma “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social”, como determina a lei, Licínia Girão – a jornalista freelancer e advogada-estagiária de 57 anos – foi chumbada logo na primeira fase deste ano do concurso para formação de magistrados. E com um desempenho que, no mínimo, se pode considerar muito sofrível.
De acordo com as pautas consultadas hoje pelo PÁGINA UM no Centro de Estudos Judiciários em Coimbra, onde realizou as provas, o sonho de Licínia Girão em se tornar magistrada ficou adiado, pelo menos por um ano. E nem esteve próxima dessa meta.
Com efeito, atendendo às suas notas nas três provas escritas – Direito Civil, Direito Penal e Desenvolvimento de Temas Culturais, Sociais ou Económicos –, certo ficou que não lhe bastará ser considerada, entre alguns dos seus pares, uma “jurista de reconhecido mérito e experiência na área da comunicação social” para ser aceite nos cursos de formação de juízes e delegados do Ministério Público. Vai ter muito que estudar.
Sendo exigido aos candidatos – para passar à segunda fase do concurso que escolherá, este ano, 104 alunos – a obtenção de notas positivas em todas as três provas (pelo menos 10, em 20), o melhor que Licínia Girão conseguiu foi, contudo, um 10,50 em Direito Civil. Mesmo assim, foi apenas a 96ª melhor classificação entre 269 candidatos.
No caso de Direito Penal, “apanhou” um 5,05 (em 20). Houve 249 candidatos com melhor nota.
Já bastaria, por si só, o “chumbo” a Direito Penal para Licínia Girão ser excluída, mas ainda teve direito a um duplo carimbo por força da negativa (8,75) à prova de Desenvolvimento de Temas Culturais, Sociais ou Económicos.
Nesta última prova, seria expectável um melhor resultado por parte de uma jornalista, porquanto foram colocadas aos examinados, para dissertar, duas questões de cultura geral – sobre capacidade de carga turística e sobre o impacto da digitalização na transformação das práticas culturais dos portugueses – a partir de trechos de notícias do Público e do Gerador. Licínia Girão não conseguiu os mínimos, isto é, uma nota de 10 ou superior. Só foi melhor do que 16 candidatos.
Apesar de ser irrelevante na passagem para a fase seguinte – provas orais e análise curricular –, uma vez que para a exclusão bastava uma negativa, Licínia Girão obteve, no cômputo geral das três provas, um total de 24,30 valores (num total de 60 possíveis), colocando-a assim no lugar 230 em 269 candidatos.
Saliente-se que passaram para a segunda fase, 119 candidatos (por esta via académica), ou seja, a taxa de aprovação foi de 44%. Nos 10 melhores classificados, constam sete mulheres.
A este desempenho de Licínia Girão nas provas para o curso de formação de magistrados do CEJ – que colocam em causa o seu estatuto de “jurista de mérito” –, acresce ainda, como já noticiou o PÁGINA UM, o facto de ser advogada-estagiária num escritório em Santo Tirso, apesar de morar em Coimbra, e de se assumir como “coordenadora da comunicação interna do Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML)”, uma tarefa que poderá ser considerada incompatível face ao estabelecido no Estatuto do Jornalista.
Porém, o seu fraco currículo não a impediu de ser escolhida para a presidência do órgão regulador e disciplinar dos jornalistas. Criada em 1995, a CCPJ foi sempre presidida por magistrados durante duas décadas: Eduardo Lobo (entre 1995 e 2001; juiz de direito à data); Eurico dos Reis (entre 2001 e 2005; juiz desembargador à data); Pedro Mourão (entre 2005 e 2014; juiz desembargador à data).
Depois, foi escolhido em 2015 o advogado Henrique Pires Teixeira, que exercia aquela profissão desde 1982 e ocupara também o cargo de director de um jornal regional (A Comarca). Antes de Licínia Girão, o cargo de presidente da CCPJ foi ocupado por Leonete Botelho, advogada desde 1992, de acordo com os registos da Ordem dos Advogados, e jornalista do Público desde os anos 90, sendo actualmente grande repórter, depois de já ter sido editora das secções Política (2009-2016) e de Sociedade (2003-2006).
Sobre a indicação de Licínia Girão para o cargo de presidente da CCPJ, o PÁGINA UM não conseguiu saber como o seu nome surgiu para o cargo. A própria não quis esclarecer esta questão.
O PÁGINA UM também quis saber junto dos oito jornalistas membros da CCPJ – que elegeram Licínia Girão – quem (pessoa ou entidade) a indicou para o cargo, se tinham visto o seu currículo e se houvera outros candidatos para o cargo. Contudo, nenhum destes jornalistas – Jacinto Godinho, Anabela Natário, Miguel Alexandre Ganhão, Isabel Magalhães (nomeados pelos jornalistas), e Cláudia Maia, Paulo Ribeiro, Luís Mendonça e Pedro Pinheiro (nomeados pelos operadores do sector) – respondeu às questões do PÁGINA UM nem prestou qualquer esclarecimento até agora.
N.D. No passado dia 12 de Agosto, o PÁGINA UM criticou, com veemência, uma inaudita recomendação da CCPJ, sem enquadramento legal, que visou “censurar” um trabalho de investigação sobre a Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Tem também o PÁGINA UM colocado diversas questões à CCPJ, algumas ainda no tempo de Leonete Botelho como presidente. Em alguns casos sem resposta. Os artigos do PÁGINA UM sobre Licínia Girão, a actual presidente da CCPJ, são de indiscutível relevância e interesse público, e sustentam-se exclusivamente em factos, tendo-se sempre dado primazia ao contraditório. Na nossa opinião, a existência de discórdias não pode condicionar a linha editorial do PÁGINA UM. Se assim fosse, tendo em conta que o PÁGINA UM tem até processos de intimação em tribunal contra o Ministério da Saúde, tal significaria, por absurdo, que teríamos de deixar de noticiar temas sobre Saúde ou sobre Marta Temido.