FUNDO JURÍDICO DO PÁGINA UM

Falta de transparência coloca Entidade Reguladora para a Comunicação Social no “banco dos réus”

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A Lei da Transparência dos Media, que obriga as empresas a declararem quem são os seus proprietários e os fluxos económicos e financeiros, tem uma escapatória: através de requerimentos à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), pode ser solicitado um regime de excepção. O PÁGINA UM quis saber quem pediu essas excepções, quais as decisões da ERC, e sob que critérios. O silêncio foi a resposta. Um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar a ERC a ser transparente foi a contra-resposta do PÁGINA UM, através do seu FUNDO JURÍDICO.

[Recorde-se que, no passado dia 9 de Agosto, a ERC acusou o autor desta notícia de andar “a insultar os membros do Conselho Regulador e a exercer coação sobre os funcionários que o atendem”]


Por esconder a identidade das empresas de comunicação social que pediram confidencialidade na divulgação de dados económicos e financeiros, bem como a respectiva decisão administrativa aos requerimentos, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) é ré desde ontem no Tribunal Administrativo de Lisboa.

O processo de intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões – já identificado com o número 2589/22.4BELSB e distribuído à juíza Maria Carolina da Silva Duarte – foi intentado pelo PÁGINA UM no último dia do prazo. O PÁGINA UM tinha feito um requerimento à ERC no dia 21 de Julho, que teria 10 dias úteis para responder. Para intentar um processo judicial, o PÁGINA UM teria um prazo de mais 20 dias seguidos. Como a ERC continuou a recusar satisfazer um legítimo pedido, o processo de intimação foi concretizado. Este é o 10º processo de intimação do PÁGINA UM levado a cabo desde Abril, sempre em virtude da recusa em facultar a consulta a processos, documentos e bases de dados.

No pedido sobre a Lei da Transparência dos Media, o PÁGINA UM solicitou ao juiz conselheiro Sebastião Póvoas, que preside à ERC desde Dezembro de 2017, “o acesso a cópia digital ou analógica de todos os requerimentos – desde 2017 até à data – das empresas de comunicação social que solicita[ram] confidencialidade dos principais fluxos financeiros e identificação das pessoas singulares ou colectivas que representam mais de 10% dos rendimentos totais e mais de 10% do montante total de passivos no balanço e dos passivos contingentes.”

De igual modo, requereu-se a consulta dos “documentos administrativos da ERC que contenham a eventual análise e decisão para cada um dos referidos pedidos de confidencialidade”, bem como dos “critérios ou normas de orientação para que que haja deferimento ou indeferimento dos pedidos.”

A ERC preferiu nem reagir, estando focada, nas últimas semanas, em fabricar inopinados incidentes envolvendo o PÁGINA UM, que culminaram num comunicado no passado dia 9 de Agosto em que acusava explicitamente o seu director [autor da presente notícia] de andar “a insultar os membros do Conselho Regulador e a exercer coação sobre os funcionários que o atendem” a pretexto da consulta de outros processos naquela entidade reguladora.

TVI – Televisão Independente tentou que os dados financeiros de 2021 ficassem ocultos no Portal da Transparência. Com a divulgação pública, a ERC indeferiu pedido, mas não quer identificar as outras 21 empresas que solicitaram o mesmo, e qual a decisão.

A promoção da transparência da titularidade, da gestão e dos meios de financiamento das entidades que prosseguem atividades de comunicação social tem sido uma das matérias mais sensíveis nos últimos anos no sector da comunicação social. Em 2015, uma lei aprovada na Assembleia da República estipulou que as empresas detentoras de órgãos de comunicação social disponibilizassem, no denominado Portal da Transparência dos Media, a relação de titulares e de detentores, discriminando as percentagens de participação social e identificando toda a cadeia de entidades a quem uma participação de pelo menos 5% pudesse ser imputada.

Por outro lado, ficou também estipulada a obrigatoriedade de comunicar à ERC a informação relativa aos principais fluxos financeiros daquelas entidades (com contabilidade organizada). Esta obrigação deveria, por lei, incluir “a relação das pessoas individuais ou coletivas que tenham, por qualquer meio, individualmente contribuído em, pelo menos, mais de 10 % para os rendimentos apurados nas contas de cada uma daquelas entidades ou que sejam titulares de créditos suscetíveis de lhes atribuir uma influência relevante sobre a empresa”, mas em “termos a definir no regulamento da ERC”.

Efectivamente, a ERC criaria um regulamento em Outubro de 2020, onde, além de estabelecer a obrigação do envio do relatório anual de governo societário (RGS), concedia excepções arbitrárias que, na prática, destruíam o princípio da transparência. Com efeito, no artigo 8º do regulamento – que não teve que passar pela Assembleia da República – refere-se que “atendendo à sensibilidade e ao caráter sigiloso de alguns dados solicitados, as entidades poderão solicitar à ERC a aplicação do regime de exceção”.

Sebastião Póvoas, presidente da ERC e juiz conselheiro.

Em 6 de Julho passado, no decurso de um pedido de confidencialidade da TVI S.A. – empresa detentora da TVI e da CNN Portugal –, que o PÁGINA UM noticiou em primeira mão, a ERC não quis identificar quais as outras empresas que solicitaram igual tratamento.

O regulador adiantou apenas que “os pedidos podem incidir sobre informação muito específica ou cumulativamente sobre vários elementos comunicados em cumprimento das obrigações legais da transparência”, acrescentando ainda que “os requerentes invocam, genericamente, (…) a sensibilidade dos dados e antecipam impactos negativos resultantes da sua divulgação, relacionados com estratégias de negócio, estruturas de receitas e a sustentabilidade económico-financeira do meio, em particular em mercados locais.”

A ERC também não indicava o número absoluto de pedidos entre 2017 e 2021, dando somente dados relativos. Segundo o regulador, naquele quinquénio, mais de três quartos dos pedidos de confidencialidade (77%) tinham sido indeferidos pelo Conselho Regulador, “que entendeu que os argumentos apresentados não justificavam a não disponibilização da informação”.

Perto de 12% dos pedidos foram deferidos, “salientando-se que uma parte incidia sobre uma informação muito específica, como a percentagem que representa um cliente relevante”. Em perto de 11% das situações o Conselho Regulador concedeu deferimento parcial. No entanto, não sabe o número absoluto que esses 23% representam nem que dados ficaram assim escondidos e porquê.

Já quanto ao presente ano, no início de Julho a ERC informava que recebera 22 pedidos de confidencialidade submetidos por entidades de comunicação social, que incluía o da TVI S.A., que veio entretanto a ser indeferido. No entanto, desconhece-se a identidade das outras 21 empresas, e quais foram as decisões da ERC.

Embora o argumento do segredo comercial seja, de facto, o mais utilizado, o PÁGINA UM sabe que as maiores empresas de media procuram, com o regime de excepção, também esconder a dependência elevada de determinados clientes, bem como de detentores de passivo, que podem englobar bancos, fundos ou mesmo o Estado, por via de dívidas fiscais.

O pedido de confidencialidade dos detentores de um montante acima de 10% do passivo pode também impedir a identidade de entidades ou pessoas que, como obrigacionistas ou credores, acabam por ter um controlo na gestão da empresa, acabando assim por “manobrar” na sombra.


N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso 10 processos administrativos e mais dois em preparação, além de uma providência cautelar. Dois dos processos foram ganhos pelo PÁGINA UM em primeira instância, mas as duas entidades (Ordem dos Médicos e Conselho Superior da Magistratura) recorreram. Apenas em taxas de justiça, o PÁGINA UM já gastou 4.131 euros. Este valor não inclui honorários e outros gastos na preparação dos processos.

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