Neste “Diário de Bordo”, o quarto dia fica registado como o dia em que atravessei o Árctico a bordo do PolarGirl. Depois da euforia do dia anterior, chegou a altura de dar um passeio calmo e relaxante pelas paisagens geladas, rumo a Barentsburg, pelos fiordes, glaciares e icebergues.
A manhã na Guest House era sempre divertida e uma oportunidade para trocar experiências, despedirmo-nos dos viajantes que partem e para preparar o novo dia.
Neste dia, o Peter iria embora. Falei-lhe dos ursos e desejei-lhe um bom regresso a casa. “Casa… Nunca volto a casa”, retorquiu ele. Pensei que era bom lema de vida. Percorrer o mundo sem parar. Confesso que estou muito longe deste desapego. Adoro sair, ver, explorar, desafiar limites e descobrir, mas também é indescritivelmente bom o regresso a casa. (Mas, Peter, tomei nota. Não é nada má a possibilidade. No seu caso, do calor do México, veio parar ao Ártico.)
Marcha, a simpática russa que me veio buscar para a tour, espalhou calor e a hospitalidade russa (e levou-me a recordar os dias fantásticos que passei na Rússia em 2016).
Chegámos ao barco. Foram dadas as instruções de segurança e cada um escolheu o seu lugar. Escolhi o meu no bar, à janela, onde me sentia na primeira fila do concerto dos Coldplay.
Entre o fiorde Isfjoren, o glaciar Esmark e icebergues, seguíamos para o nosso destino de visita a Barentsburg. Aqui, a vida selvagem também é muito abundante. Avistam-se focas, morsas, e até um urso polar.
Durante a viagem serviram um almoço muito saboroso. Perguntei a Marcha que carne saborosa era aquela. “É baleia. Não dizemos, pois as pessoas antes de comerem acham estranho mas depois de experimentarem adoram”, disse ela. Confirmo e aprovo.
Durante a viagem, tive a oportunidade de conhecer Jon “small Svalvard”, que foi o amigo de Matt que o avisou do local onde estavam os ursos, na véspera.
Era muito simpático e conhecedor da vida animal, em especial do Rei do Ártico. Falou de Elsa, a ursa que avistei com os filhos, e que tinha um irmão, Frozie, um urso que foi abatido após ter invadido a tenda de um alemão. A história não acabou bem, nem para o alemão, nem para Frozie, que acabou por cair morto a poucos metros do aeroporto.
Jon contou que, por vezes, as pessoas arriscam, fazem churrascos e dormem em tendas. Um urso cheira um churrasco a quilómetros de distância. Explicou também como funcionam os ursos quando nascem: a mãe foge com eles e protege-os até chegarem à idade adulta. Assim que pode, separa-os para não correrem o risco de se matarem e, mais ainda se outro macho se aproxima, pois, matará as crias para poder engravidar a ursa e deixar os seus genes nas novas crias.
Enfim, um admirável mundo novo, a vida dos ursos e a sua capacidade de adaptação ao degelo e ao desaparecimento do seu habitat, como o conheciam. “Eles sobreviverão sempre”, disse Jon, falando sobre a extinção da espécie do urso polar.
Chegámos a Barentsburg, a segunda maior cidade de Svalbard, onde russos e ucranianos vivem em paz e tranquilos, exercendo as suas diversas profissões.
A nossa guia, Iryna, de Moscovo, a viver na cidade desde 2017, contou como é viver numa cidade que pode ser percorrida a pé numa manhã. Mas também explicou como os mineiros, desde o momento que entram na mina até que chegam ao local de mineração, perdem o mesmo tempo de viagem que um morador na gigantesca Moscovo.
Iryna falou-nos da vida na cidade e mostrou-nos os lugares de destaque, desde o anfiteatro de cinema, cujo filme é a paisagem do Ártico, passando pela casa onde mora, a antiga casa do governador e a única com varanda, os correios, o restaurante bar, o hotel, a fábrica de artesanato e as casas mais antigas. Vimos os poucos sinais que restam do comunismo e duas cabeças de Lenine.
Aproximámo-nos da Estação de Pesquisa Russa, a zona mais interessante, para mim. Parecia que estávamos num filme de James Bond e que, a qualquer momento, teríamos de fugir dali. Mas verdade é que os cientistas com quem me cruzo param para dizer olá. Eram simpáticos. A envolvente visual poderia ser a Lua, não estivessem ali veados a pastar. “Aqui são como vacas nos Alpes”, disse Iryna.
Regressámos ao Polar Charter a caminho da capital e dois chineses, a residirem no Canadá, juntaram-se à viagem e decidem mostrar o vídeo de um urso gigante que encontraram a pé. “Que medo”, pensei eu. “Estávamos armados, mas sentimos medo. Acho que o urso também. Além de bem alimentado, são espertos já sabem que se estamos ali temos armas. Entrou no mar e seguiu a sua vida e nós também”, explicaram. O vídeo era impressionante!
Chegámos a Longyearbyen. Era tempo de ir buscar a minha bicicleta e ir jantar ao Mary Ann’s Polarrigg, um hotel com restaurante muito exótico e local e mais original.
Ali repeti o “trio árctico”, que inclui baleia, foca e rena, o bacalhau fresco selvagem e, de sobremesa, o crumble do dia de frutos vermelhos e para acompanhar um Riesling alemão.
Findo o jantar, ganhei coragem para voltar de bicicleta para casa e apreciar a minha última noite branca em Svalbard.
Cheguei à Guest House onde encontro Jérémie, o francês que nos chamou para ver a raposa do Árctico, e falámos sobre as histórias dos ursos… Jérémie, que estava a pensar ir até à cidade ver uns amigos, assumiu estar a ficar com medo. Ao lado faziam um churrasco e até parecia que estava a escurecer. Uma galhofa e só falávamos dos pesadelos que íamos ter com os ursos a entrar pelo dormitório.
O serão chegou ao fim e, olhando pela janela, vejo a raposa do Árctico. Terá vindo despedir-se? Vou acreditar que sim. A nossa vida é um sonho e podemos acreditar no que quisermos.
Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.