Elucubrações

A importância da perspectiva ocular na narrativa policial

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A importância da análise tipológica do INFRACTOR, o estudo exegético da sua evolução ao longo dos séculos, na literatura romanesca ou mesmo na saga popular, só pode apresentar um dos aspectos (sem dúvida de grande importância) das origens da literatura policial[1].

O campo abarcado não pode ultrapassar uma certa caracterização de tipo social por vezes ambígua, em que, embora possamos reconhecer uma anotação considerável para a análise, não deixamos de notar uma ambivalência irredutível, inlaw/outlaw, aplicável a qualquer época e ideologia indiferenciadamente.

A crítica marxista tem sido, habitualmente, atenta, sobretudo ao fundo social que envolve o romance policial, quer enquanto elemento temático incorporado na diegese, quer enquanto contexto dentro do qual as narrativas são produzidas e recebidas.

René Ballet, por exemplo, num texto em procura apresentar o aparato formal do romance policial reconhece que “a estrutura do romance-folhetim policia1 reproduz, sob uma forma caricatural a estrutura social tal como a concebe um certo público popular.

Um herói (ou uma heroína) é injustamente privado do lugar que lhe compete na sociedade (a sua alta nascença é desconhecida a sua herança é usurpada). O seu principal inimigo não é o verdadeiro representante do poder, mas um usurpador; a regra do jogo não sendo respeitada, todos os golpes se tornam permitidos; o usurpador tendo roubado o seu poder, o ladrão torna-se justiceiro”.

Ora, o tipo de relações definido na história-folhetim faz ressaltar, mais ou menos profundamente, o carácter do fora-da-lei que, até fim do século XIX, era apresentado como um desgarrado do grupo, mas que podia ser recuperado após denunciada a sua falta, depois do detective o ter integrado no contexto e lhe ler extorquido a confissão de culpado.  Quer tivesse sido usurpado nos seus direitos espirituais (psicológicos, morais), quer nos materiais (os bens a herança) na óptica que encara o criminoso, a concepção mantém-se quase permanente: alguém está fora do grupo e é urgente recuperá-lo.

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E mesmo o romance policial moderno, incluindo o de máscara negra (que tem como referência de origem os romances de Chandler e de Hammett) que, dentro do género, é uma variante muito atenta às contradições sociais (o que é mais raro no romance policial de enigma) atendendo a que sugere sempre a séria acusação a um erro social generalizado,  para lá da capacidade de decisão do  outlaw, mantém-nos numa óptica do mal  e  do  bem  mesmo que o bem esteja numa ordem a que Phillip Marlow aspira e que Sam Spade já deixou de procurar.

E, de facto, o grande mérito destes dois heróis é terem deixado de encarar o bem detidos ou representados por este ou aquele grupo social, incluindo os representantes da lei ou mesmo por um herói lutando pela ordem contra a usurpação.

Neles, e em torno deles, tudo aparece corrompido pelo sistema e o valor deve estar algures para lá dele, numa outra sociedade diferente. Daqui para diante será, talvez, supérfluo, sublinhar o que a observação do herói nos pode fornecer.

Em última análise sabemos o que é Bond, o assassino da instituição, ou Hammer[2], o desesperado defensor romântico dos pontos estratégicos dos Estados Unidos: assassinos que o sistema cria na defesa contra uma entra lei de um outro sistema. Mas os detectives privados, mais próximos do paradigma crítico e existencial do século XX, são seres, por vezes, tão perplexos e claudicantes face ao real que os ameaça quanto a vítima que neles busca a protecção ou o leitor que os toma como expertos na decifração de enigmas. 

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O que o romance de investigação de um enigma (o modelo do “quem matou?”, o who dunit clássico) veio trazer em relação ao romance de aventuras clássico, foi a denúncia, ainda que inconsciente, da situação privilegiada em que o leitor outrora se encontrava, como espectador de uma cena em que estivesse permanentemente na posição de juiz e de incontestável detentor da verdade.

Na sua necessidade interna de criar a atmosfera do medo e do terror (reverenciando a atmosfera gótica), ou, pelo menos, de preocupante enigma, o romance policial de investigação (o romance policial por excelência) deixa transparecer a forma pela qual o senso comum precisa dos seus guardiões e como a  observação pura e simples do real não passa, de facto, de uma observação das aparências de um certo efeito do real onde os indícios estão postos de forma equívoca, iludindo um senso comum não privilegiado, sendo o detective o único detentor do privilégio de os perspectivar correctamente. Holmes ou Poirot não descobrem nada nos factos do mundo que constituem enigma, apenas têm de os ordenar devidamente.      

Ao ser a salvaguarda, na sua época, do ponto de vista da ordem segundo as instituições que não contesta, o romance de investigação é, simultaneamente, o repositório dos indícios pelos quais o grande terror se anuncia, deixando perceber nas entrelinhas de que forma a composição romanesca é resultante, e também veículo, das coordenadas ideológicas de uma determinada sociedade e também da forma pela qual essa sociedade apreende e expressa o real, emergindo este numa organização estruturada e inconsciente que é o espectador fictício do crime e o leitor da ficção.

Gombrowicz denuncia, e muito bem, em Cosmos, de que forma o romance policial pode ser um roteiro de indícios, a descrição de um cosmos em que o leitor, na ilusória encarnação do espectador (que pode surgir sob o aspecto de um herói, detective ou não, movendo-se no universo diegético da narrativa em causa), coordena os elementos para neles se projectar ou projéctar toda a culpabilidade de que, inconscientemente, é agente. Não “há leitura inocente” como não há visão inocente do mundo.

É em torno deste ponto que queríamos encarar o romance policial, procurando ver nele uma imagem do real que é ordenada pela perspectiva e  a óptica e, mais  ainda, pelo jogo da perspectiva e da óptica segundo o qual o romance policial subverte todo o sistema narrativo em que assentava o romance tradicionalmente consagrado como realista, padronizado enquanto modelo clássico da narrativa moderna.

Surge-nos Poe como um ilustre predecessor imediato da técnica narrativa do romance de investigação, e, de forma particularmente significativa, por ele ter sido um escritor a que não podemos chamar prioritariamente policial. 

Poe cultivou um tipo de narrativa de imaginação que, como divergência do sistema narrativo realista tradicional, nos parece fundamental. Num dos seus contos mais curiosos, quanto a essa dimensão, por explorar a falibilidade das nossas percepções, e a possibilidade do nosso sistema sensorial nos enganar e nos fornecer imagens inverosímeis do mundo, The sphinx (A esfinge da caveira, como habitualmente tem sido traduzido para português) coligido em Tales of mystery and imagination[3], podemos ver a forma assaz minuciosa através da qual Poe jogou com a imagem do real, fazendo dela ponto de partida para a constituição de um universo imaginário que ganha raízes num quotidiano enformado e perspectivado pela ideologia  dominante.

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O romance policial de investigação só  vem tomar, de forma mais grosseira  e num outro ponto que podíamos considerar de perda da consciência crítica, com outras intenções e perspectivas ideológicas, este trabalho que o poeta americano elevara à categoria de técnica  narrativa, apoiando-se nas suas terríveis suspeitas que o fantástico tinha algo a ver com o real.

Que  nos  conta  A esfinge  da caveira?. O narrador foge de Nova Iorque, atacada por uma forte epidemia, e refugia-se em casa de um parente: “During the dread reign of the Cholera in New York, I had accepted the invitation of a relative to spend a fortnight with him in the retirement of his cottage ornee on the banks of the Hudson”.

Assim começa um retiro que ele descreve, sumariamente:

We had here around us all the ordinary means of summer amusement; and what with rambling in the woods, sketching, boating, fishing, bathing, music, and books, we should have passed the time pleasantly enough, but for the fearful intelligence which reached us every morning from the populous city. Not a day elapsed which did not bring us news of the decease of some acquaintance[4].

Estamos logo, portanto, desde as primeiras linhas, sob o perigo de uma ameaça mortal, respirando uma atmosfera em que a morte é o elemento preponderante. Não é necessário recordar como esta ameaça da morte está sempre presente em qualquer novela policial, mas talvez seja recordar como ela serve de    pórtico a muitas obras em que o fantástico e o imaginário, o campo do terrífico e do erótico dominam por excelência.

Citemos só as duas obras em que um morticínio, ou a sua probabilidade, preludia a narrativa de dotes cativantes, ou forte suspense da intriga: Decameron e As mil e uma Noites. Ora, no romance policial, desde o título que temos anunciada a visita do exterminador.

Algo de novo temos anunciado então em relação à narrativa de aventuras do passado, que vem entroncar directamente na narrativa fantástica, habitada por entes maléficos e de obscuros desígnios: a ameaça de perigo ou do terror enunciado como ponto de partida, atmosfera   de “suspense” criada por algo ou alguém que, das trevas, ameaça o sossego, a tranquilidade e a vida. E, em Poe, parece-nos ter sido criado todo o sistema de referências tópicas que viriam a servir de significantes supremos nos romances de   investigação, elementos esses que, de certo modo, lhe são inerentes como índices, motivos, constelações temáticas. Mesmo do romance da série negra não deixa de ressaltar uma ameaça nocturna, uma entidade enigmática, das trevas, que faltou nos ambientes e cenários das façanhas reparadores das gestas e dos romances de aventuras, enaltecedores do bandoleiro que busca o resgate pela justiça social ou, pelo menos, focando em primeiro plano o fora-da-lei

É importante que se constate, então, o seguinte: Todo o horror da visão do narrador, neste conto, surge nessa atmosfera que ele continua descrevendo ainda nas primeiras linhas:

 “Then as the fatality increased, we learned to expect daily the loss of some friend. At length we trembled at the approach of every messenger. The very air from the South seemed to us redolent with death. That palsying thought, indeed, took entire possession of my soul. I could neither speak, think, nor dream of anything else. My host was of a less excitable temperament, and, although greatly depressed in spirits, exerted himself to sustain my own. His richly philosophical intellect was not at any time affected by unrealities. To the substances of terror he was sufficiently alive, but of its shadows he had no apprehension[5]

white ceramic bowl on black table

Ora o estado de espírito agrava-se com a leitura de alguns livros que se referiam a determinadas coisas subterrâneas. Com brevidade,  o narrador encontra-se a descrever uma   troca  de impressões com o seu anfitrião, em  que  a  sua  própria  tese era a do valor da  crendice: “I contending that a popular sentiment arising with absolute spontaneity – that is to say, without apparent traces of suggestion – had in itself the unmistakable elements of truth, and was entitled to as much respect as that intuition which is the idiosyncrasy of the individual man of genius[6]. Ora, a crença pessoal do narrador é a de que algo de indescritível e mal definido ou indefinido, existe e pode manifestar-se de forma mal controlada pela razão.

O fulcro da história situa-se no confronto entre o acontecimento que foi a visão aterrorizante de um monstro descendo uma colina, que teria aparecido diante da janela perto da qual o narrador se encontrava a ler e a desmontagem desse facto, que é desmentido numa segunda visão do narrador estando presente o seu familiar anfitrião.

É perante a descrição que faz da aparição, ao seu parente, que se começa a desvendar o mal-entendido, o trompe-l’oeil, a ilusão que “criara” o monstro gigantesco e disforme, com a caveira desenhada no peito.  Ao ouvi-la, o familiar, pessoa culta e arguta, capaz de um raciocínio calmo reflexivo procura um manual escolar de História Natural e destaca, nele, algumas linhas que resume, em voz alta par o seu ouvinte.

Tratava-se da descrição de um insecto sem qualquer anomalia, de dimensão média, uma variedade de borboleta, cuja descrição física, descontando o exagero da dimensão que a visão alucinada criara, corresponde à do monstro. Imediatamente se verifica ser a visão anormal proveniente do erro de ajuste da perpsectiva ocular tendo o narrador visto, simplesmente o animalzinho, um insecto, a percorrer uma teia de aranha para cá da janela, portanto, para cá do enquadramento da cena onde se desenrolava todo o espectáculo da paisagem com monstro.

O próprio “anfitrião-erudito” (voz de um saber enciclopédico fundamental) faz notar, com insistência, a “monstruosa” margem de erro que pode surgir, por uma má avaliação das distâncias e, portanto, de uma má localização do objecto, no enquadramento ocular.

Blow-Up – História de um Fotógrafo (1966), de Michelangelo Antonioni, onde, com a ampliação de perde o corpo do crime observado

Resumamos, agora uma história de Conan Doyle, breve e exemplar “A aventura do vampiro de Sussex”[8]. O ambiente de escritório de Holmes é o local onde chegam as mais estranhas notícias, que o superdedutor recebe com um misto de suspeita e dúvida, mas, antes de ser dominado pela surpresa, põe em funcionamento um domínio da razão quase imediato. Esse é o ambiente, sempre surpreendente e misterioso, que Watson, médico, provavelmente um positivista, que representa, permanentemente, a perspectiva verosímil dos factos, contempla quotidianamente, sem que, por essa razão, se lhe desvende um só milímetro da atmosfera de inteligibilidade de que é testemunha, ao longo dos anos, irradiando do semblante e da atitude do seu extravagante parceiro.

Sempre se queda no limiar das trevas com os seus monstros, nos recantos mais obscuros, sinais das grandes disjunções do entendimento e da razão, que Holmes controla com automática certeza e perfeição dedutiva.  Quem são os criminosos? Quem é Hol­mes? Eis um mistério que Watson e os leitores, pelos seus olhos ou pelos seus ouvidos, nunca saberão ao certo. 

Holmes detém os monstros. Melhor, Holmes sabe ver o anormal pela força da sua formidáve1 razão, de forma a torná-lo razoável para Watson e também para nós. O detective de Doyle é, simultaneamente, o operador epistémico das virtualidades da ciência enquanto saber e domínio das regras do universo, e o detentor de uma aletheia, capaz de circunscrever as causas primeiras e últimas, detendo o alfa e ómega do saber supremo.  

Nesta história, por exemplo, chega um pedido de auxílio para a tentativa de solução de um caso de vampirismo. Watson espanta-se, mas Holmes revela, de imediato, um plano de eliminação de hipóteses traçado no momento, logo após a leitura da carta em que o pedido de ajuda tinha sido feito. Diz a Watson para consultar o livro sobre os vampiros. 

Lembremos o livro que elucida o narrador de Poe. O funcionamento não é o mesmo, nos dois contos que comparamos, mas, em ambos, o aspecto fundamental do livro é trazer-nos ao terreno da enciclopédia, para aliarmos o valor de verdade dos casos em causa: no fundo estabelecer as bases do status causæ em que vão assentar as crenças, as convicções ou as formulações opinativas. Em Poe, a enciclopédia, com a sua força positiva, fundamenta a espisteme. Contudo, para Holmes, a episteme é apenas uma forma de conformismo, uma doxa acomodatícia, que não conduz ao verdadeiro acto de intelecção, capaz de nos levar ao verdadeiro, a saber, a aletheia.

Três ilustrações das construções geométricas elaboradas, se acordo com a teoria renascentista monocular (também chamada ciclópica) da pintura: de Abrecht Dürer, em cima. Em baixo, à esquerda, plano do filme de Peter Greenway, The Draughtsman’s Contract (1982 pt: O contrato) ele próprio desenvolvimento de uma história policial em que a perspertiva do pintor revela o crime. À direita, ilustração do tratado sobre a perspectiva de Du Breuil (1642-1649)[7]

“Lixo”[9], diz Holmes, embora concorde que existem casos de real vampirismo e não só os 1endários mortos-vivos sugadores de sangue. “Esta agência tem os pés assentes no   chão e assim tem de se manter”  Não se tente levar Holmes para fora  da  razão  ou arrancá-lo da terra. “Os fantasmas não são para aqui chamados”[10]. Os monstros são criaturas das lendas. Quem olhar com a força e penetração de Holmes também ficará entre os que não declinam perante a invasão vinda das trevas, nem as perigosas ameaças do antro obscuro.

Continuemos. Uma razão de amizade leva Holmes ao caso. Trata-se de uma senhora, em segundas núpcias, que foi vista por duas vezes a agredir o adolescente enteado e a sugar o pescoço do seu filho, recém-nascido. Foi vista a praticar estas acções. Mas Holmes, quase desde o princípio, sabe que assim não é. E a dedução é simples, a partir das premissas fundamentais. Primeiro: não existem vampiros. Que nos diz a razão? Um filho ciumento pode odiar a madrasta e o meio-irmão.  Holmes descobre veneno e o processo abdutivo desencadeia-se: Se for verdade que um adolescente sente ciúmes dos que lhe retiram espaço nos afectos familiares, é possível deduzir toda a história sem erros.   

O jovem enteado da senhora tentou matar o bebé e a mãe deste, sua madrasta, bateu-lhe, tendo, em seguida, sugado o sangue do filho, procurando extrair o veneno. Para não chocar o marido ocultou sempre a verdade, preferindo passar por sádica e perversa. Do mal o menos.

Holmes, contudo, não pode admitir tais anomalias. Tudo se explica pelo mal menor. Pelo senso comum, entre a mulher adulta, vampiresca, sádica-perversa e o filho vagamente incestuoso, mas órfão, o meio termo e o equilíbrio indicam-nos um só caminho: O segundo. A cena, tal como é relatada inicialmente, era enganosa. A verdade não estava patente, embora fosse evidente para quem, como Holmes, sabe pesar os prós e os contras do sensato e do possível, rejeitando o insensato e o impossível.

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O senso comum foi para a burguesia mercantilista muito mais forte defensor da ideologia dominante do que a religião foi para a monarquia ou para o feudalismo. A sensatez, generalizada como conservadora dos seus valores ideológicos, apresentou-se com uma maior coerência, enquanto organizadora da visão do mundo, do que a religião fora para as classes anteriormente hegemónicas (clero, nobreza), pois ensinou a ver, sobretudo, na terra os indícios das forças celestes.

A sensatez apoia-se na perspectiva da óptica. Esta é-lhe necessária para a organização de um espaço em que todo o espectador é convidado a ver, através de uma representação controlada, a imagem do real.

Poe, no conto acima citado, dá-nos o mecanismo correcto pelo qual a perspectiva do real e o seu efeito, na obra, pode ser viciado “por um erro na avaliação das distâncias”. A tomada em consideração desse facto enquadra-se no critério ideológico do familiar anfitrião, que tem perante a clivagem política e as lutas e critérios partidários uma opinião muito “filosófica”.

Para ele não há dúvidas de que a posição frontal e egocêntrica é a que permite uma visão correcta dos fenómenos. Não interessa muito, porém, desse ponto de vista subjectivista, saber as razões pelas quais se escolhe esta ou aquela, perspectiva, mas sim saber e notar que esta poderá mudar o que virá pôr em causa a validade da posição tradicional romanesca, clássica ou realista, que transparece no romance, no teatro ou na pintura como dominante ou hegemónica. Para a defender, já não se poderá dizer que ela é a única.  Forçosamente recorremos a um critério de valor, discutível, que pode ser confrontável, explicado e experimentado.

Quando o relato policial de investigação se enformou, no interior da produção realista hegemónica, a técnica narrativa e, com ela, os meios credíveis de se apresentar e representar o real estavam em vias de ser postos em causa. Um conto, como este, de Poe, não deixa de ser significativo por ser a apresentação de um caso ocorrido em plena vigília de um narrador com muitas marcas de autoralidade. O que não acontecia, por exemplo, noutras histórias do autor, como Ligeia, onde a possibilidade do regresso dos mortos parece prevalecer, alternando, como hipótese, com a percepção delirante do narrador autodiegético que se sente dominado pela hipótese do retorno fantasmagórico ou, ainda nas narrativas de Nerval, por exemplo, com o seu clima onírico dominante.

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A resposta, de superação formal, quase em termos dialécticos, é dada pelos três contos de Poe dominados pela figura do Chevalier Dupin, que são expressos por um narrador intradiegético, companheiro do dotado “investigador”, com especial destaque para The murders in de Rue Morgue.

Não só o dispositivo narrativo introduz os termos do permanente balancear dialéctico entre as margens da realidade verosímil e a hipótese fantástica, representado pelo detective acompanhado pelo seu “narrador privado”, anexado, por isso, à história contada – processo que voltarão usar os grandes criadores e sustentáculos da narrativa policial, de Conan Doyle a Rex Stout, passando por Agatha Christie – como as histórias revelam hipóteses reais, que parecem desafiar a verosimilhança, convidando à abertura para as regiões do excepcional, do extraordinário e até, por vezes, do fantástico.

Voltando aos dois contos aqui considerados mais atentamente, devemos registar que é ainda a explicação dos Mestres que é invocada em ambos os casos. É com circunspecta razão que a perspectiva ocular é corrigida, e é categoricamente que Holmes recusa a alusão a fantasmas .no caso de Holmes (“No ghosts need apply”). Está escrito no Livro (com todas as aparências de registo enciclopédico) que os vampiros são lendas e, portanto, o sensato e cerebral detective tem, atrás dele, como seu apoio “todos os juristas que foram encarregues, pela sociedade, de traçar o limite aceitável entre a razão e a desrazão” (Maude Mannoni, 1971: 199).

Se o erro surge no espaço do real que está apontado para ser aquele que a razão admite, é verdade que a óptica do espectador deve obedecer a certas regras para que a imagem não surja falseada. Só Holmes nos surge como depositário daquela sabedoria da sensatez que prescreve: “Não importa tanto conhecer o débil [neste caso, tanto o leitor ingénuo como a testemunha do facto criminoso ocorrido, que carece de discernimento para o explicar] como assinalar-lhe uma situação jurídica, numa sociedade cuidadosa, antes de tudo, na salvaguarda dos bens da família” (M. Mannoni, 1971: 199). 

Não só os débeis como os indivíduos amorais (que, por uma anomalia qualquer, ignoram os padrões de valores) nos surgem como criminosos ou cúmplices, mais ou menos passivos, mais ou menos voluntários. Mas essa anomalia é posta logo em pratos limpos e explicada, quase clinicamente a solução.

Neste conto de Doyle, o jovem edipiano, assassino em potência, é denunciado pelo detective e ele mesmo lhe receita sem hesitações uma cura de férias. De facto, os monstros anunciados pela óptica incorrecta nunca correspondem à realidade que o “guardião” demonstra. O erro apontado pelo detective não é só o da falta ou do crime do fora-da-lei efectivo ou potencial criminoso, mas é também o do espectador, testemunha da ocorrência, que deixou o seu senso comum ser abalado ou confundido pelos sinais que não soube interpretar, pelas distâncias que não soube avaliar, para perceber o que os seus olhos viam.

Por não garantir a correcção que a distância introduz permitido o divisar, tendo em conta a profundidade de campo, e não ser iludido pela excessiva proximidade ou empenho criado pela emoção ou o espanto.

“A negação, a rejeição e depois a objectivação do louco, como matéria de estudo científico, são o resultado de um desconhecimento no homem dito normal, não só do seu próprio medo como também dos seus sonhos sádicos, e ainda dos mitos e superstições que lhe povoaram a infância e se prolongam nele sem saber” (M. Mannoni, 1971: ). A sensatez do detective, face à anomalia, é a “do adulto quando se encontra face a um semelhante que não é a imagem do que ele crê poder esperar, e oscila, numa atitude de rejeição e de caridade” (M. Monnoni, 1971: 201).

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A mulher não era vampiro, hipótese que seria, se tivesse sido confirmada, justificadora dessa crendice popular, dessas superstições que se instituiu serem imaginárias e não reais e a história não seria policial, inspirada pela razão, mas sim fantástica, ou mesmo pertencente à esfera do maravilhoso.

Porém, a narrativa policial de investigação apresenta-se, quase sempre, manifestamente a correcção do erro ou mesmo da crendice e, talvez por isso, essa modalidade narrativa tenha sido escolhida, pelo seu sistema de equívoco-correcção, como estrutura modelar para o argumento cinematográfico, onde a óptica surge como tal, num sistema em que o relato se firma na figuração pura, melhor ainda, no permanente confronto da fala e da escrita figurativa e ideogramática.

As aparências e a realidade o logro e a verdade estão num permanente jogo, no qual o que surge padronizado é o lugar em que as leis da razão reprimem as trevas e os seus príncipes empreendedores, como nos revelam, por exemplo, as narrativas cinematográficas de Hitchcock ou de Brian De Palma.

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


Bibliografia

Doyle, Conan, 1930, The Complete Sherlock Holmes, Dobleday & Company, inc., New York

Mannoni, Maude, 1971, A Criança, a Sua “Doença” e os Outros, Zahar Editores, São Paulo                              

Poe, Edgar, Allan, 1994, The Complete Illustrated Stories and Poems, Chancellor Press, London

Poe, Edgar, Allan, 1971, Histórias de Mistério e Imaginação, Verbo/RTP, Lisboa


[1] Publicado em 2 de Julho de 1971 no Notícia da Beira (Moçambique). Foram introduzidas correcções e ligeiras alterações.

[2] Os quarto “heróis”/protagonistas que acabamos de citar são personagens, respectivamente dos romances ou mesmo das longas séries romanesco/novelescas respectivamente  de Chandler, Hammett,  Fleming,  Spillane.

[3] A edição de referência é: The Complete Illustrated Stories and Poems, Edgar Allan Poe, Chancelor Press/Reed Consumer Books, London, 1994

[4] Cf. op. cit. p.720. Apresentamos, em seguida uma tradução potuguesa “Estávamos rodeados de todos os recursos comuns para as diversões estivais. E que tempo agradável, teríamos passado a vaguear pelos bosques, a desenhar, a remar, a pescar, a tomar banho ou entregues à música ou à leitura não fossem as terríveis notícias   que   nos   chegavam   todas as manhãs da grande cidade. Não passava um dia que não nos trouxessem a notícia da morte de qualquer pessoa conhecida” (Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

[5] Cf op. Cit. P. 720. Resumimos, a partir da mesma tradução “Depois, à medida que a desgraça aumentava, habituávamo-nos a esperar diariamente a perda de algum amigo. Finalmente, tremíamos já à aproximação de qualquer mensageiro. O próprio ar do Sul parecia-nos impregnado do odor da morte. Aquele pensamento obcecante apossou-se, na realidade, do meu espírito. Não conseguia falar, pensar ou sonhar com outra coisa. O próprio ar do sul parecia-nos impregnado do odor da morte” (in Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

[6] “…eu afirmava que um sentimento popular que brotava com absoluta espontaneidade, quer dizer, sem traços aparentes de sugestão, continha em si a própria substância da verdade e era digno de bastante respeito” (in Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

[7] A especulação narrativa de Poe sobre a deformação visual que terá alucinado o protagonista-narrador do conto em questão, assenta no facto de que, resumidamente, se pode considerar que uma visão muito aproximada corresponderá à visão monocular que, a não ser corrigida, justapõe imagens. Pelo que alcança numa profundidade de campo tendencialmente infinita (numa planificação que não tem em conta a tridimensionalidade que se obtêm pela conjugação dos dois focos de percepção que são os dois olhos), funciona de tal modo que elementos no “fundo” da imagem maiores que elementos “mais próximos” são vistos com tamanhos projectados menores e vice-versa, os “mais perto” menores são vistos com tamanhos projectados maiores. Resumindo, o narrador protagonista, perturbado pelo medo ter-se-á deixado enganar pela sensação do muito próximo, não fazendo a correcção perceptiva pela a utilização dos dois olhos. É possível, mas é pouco verosímil. O resultado obtido é semelhante ao que, também obtêm, em jogos de perspectiva, Peter Greenway, no seu Contrato e Michelangelo Antonioni em Blow-Up, que evocamos por duas imagens acima apresentadas.   

[8] Cap IV do livro The Case-Book of Sherlock Holmes (nem todas as edições ordenam as histórias da mesma forma – umas respeitam a primeira edição em livro, outras, como a que aqui citamos de uma localização online, seguem a ordem da primeira publicação dos contos, em periódicos). Cf. se pode verificar aqui.

[9]“ ‘Rubbish, Watson, rubbish! What have we to do with walking corpses who can only be held in their grave by stakes driven through their hearts? It’s pure lunacy’.

But surely,’ said I, ‘the vampire was not necessarily a dead man? A living person might have the habit. I have read, for example, of the old sucking the blood of the young in order to retain their youth’ ” (1930: 1034).

[10]“ ‘You are right, Watson. It mentions the legend in one of these references. But are we to give serious attention to such things? This agency stands flat-footed upon the ground, and there it must remain. The world is big enough for us. No ghosts need apply. I fear that we cannot take Mr. Robert Ferguson very seriously. Possibly this note may be from him and may throw some light upon what is worrying him’ ” (1930: 1034).

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