BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL

A celebração do que ainda nos falta

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Jorge Luís Borges dizia que quem acreditava em casualidade, não sabia das leis da causalidade. De fato, não foi por casualidade que li pelo menos três obras que falam diretamente e indiretamente do bicentenário de Independência do Brasil.

A primeira foi a alentada, mas quase rococó, biografia amorosa da Marquesa de Santos, Domitila de Castro Canto Melo, a rumorosa e mal falada amante de Dom Pedro I (IV em Portugal), de autoria de um colega, Sérgio Buarque de Gusmão; a segunda foi um enredo póstumo do meu mui querido amigo, José Antônio Severo, que eu ilustrei, transformado num ensaio quase romântico, sobre as guerras de Independência que se seguiram ao famoso Grito do Ipiranga (no nordeste); e, por fim, a alentada biografia de Dom Pedro IV, de Eugénio dos Santos, professor de Ciências da Comunicação, da Universidade do Porto.

Desenho de ©Enio Squeff

Nada casual, mas também nada intencional. Os livros me chegaram, naturalmente, como de encomenda.

Não é  o caso de comentá-los muito. O professor Eugénio dos Santos, trata o homem que tornou o Brasil independente de Portugal e que venceu o absolutista Dom Miguel no famoso Cerco do Porto, como um herói. E ele o foi: quando abdicou da coroa do Brasil em 1831, ninguém acreditava que venceria as forças de seu irmão Dom Miguel, em Portugal, muito mais numerosas. Mas saiu vitorioso e impôs a monarquia constitucional, com sua filha Maria da Glória, como soberana.

Está aí o defeito do livro do professor Eugénio, pelo menos para os brasileiros: ele se demora sobre as dificuldades de governar um país em ebulição, como o Brasil – mas logra deixar seu filho, que se tornará Pedro II. E então se demora sobre o picante caso amoroso do Imperador com a Marquesa de Santos. O tema é bem conhecido dos brasileiros.

Uma pena, pois a guerra civil portuguesa, a descrição de suas manobras seria muito mais interessante e o título de herói, o que supõe a coragem e a determinação, algo que quase não se divulga sobre Dom Pedro, seria plenamente confirmada.

Dom Pedro I ou IV, ainda é um dilema para os brasileiros. O antimonarquismo do Brasil, fruto de uma propaganda muito bem urdida quando os militares deram o golpe que derrubou Dom Pedro II, nunca facilitou uma visão crítica da República, que se seguiu, e que foi oligárquica até quando os militares puderam garantir. Claro que ninguém pode reivindicar o retorno à monarquia. E Dom Pedro foi o fundador da monarquia que tornou o Brasil independente, algo meio paradoxal.

Além disso, quando houve ocasião de comemorar o translado dos restos de Dom Pedro para o Brasil, como agora em que se celebra o bicentenário da sua independência, haverá quem se lembre de que o Segundo Império foi escravagista, como o Primeiro, embora nunca se releve que Dom Pedro era contra a escravatura.

Nos vários artigos que escreveu sob pseudônimo em alguns jornais que circulavam no Rio de Janeiro, Dom Pedro defendia claramente o fim da escravidão, algo impensável para os oligarcas que comandavam a Economia, à época e que dependiam da mão de obra escrava para a monocultura que então se praticava no Brasil, nomeadamente da cana de açúcar, do café, do algodão e mais modernamente da soja.

Quanto ao mais, sabe-se, Dom Pedro foi um femeeiro renitente. E o povo do Rio, que tinha a Imperatriz austríaca, dona Leopoldina, em alta conta, nunca lhe perdoou ter colocado a sua amante no Paço Imperial.

No entanto, ninguém acusa Dom Pedro de assassínios facinorosos, a não ser a suspeita pela morte de um republicano italiano, Libero Badaró, que vivia em São Paulo, e que hoje é nome de uma fundação paulistana e de muitas ruas brasileiras.

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Acresce-se a isso uma espécie de maldição histórica. Quando a Independência brasileira fez 150 anos, quem a comemorou foi um ditador, o general presidente, Garrastazu Médici, um dos mais sangrentos ditadores que chegara ao poder depois do golpe militar de 1964.

Tudo nos conformes, digamos: dona Leopoldina e dona Amélia repousam, com seus restos mortais ao lado do marido. Agora, porém, no bicentenário da Independência, quem celebra a visita do coração, saído do Porto, do primeiro imperador brasileiro, é Jair Bolsonaro, talvez o pior presidente que o Brasil já teve depois da redemocratização.

Com tudo isso, o que sobra é o bicentenário. A batida frase de Samuel Johnson, de que “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”, está sendo amplamente praticada pelo ex-capitão Bolsonaro. Em nome das cores verde-amarelas e do bicentenário que deve realmente ser comemorado, sua turba fascista brandirá as cores do Brasil para rememorar o ato de Dom Pedro.

Mas há uma falácia para a grande maioria do povo brasileiro, que hoje vota em Lula para presidente. E que está liderando a corrida presidencial com mais de 40% dos votos, muito próximo de vencer o atual mandatário já no primeiro turno, pois no cômputo geral, faltam-lhe apenas alguns pontos para chegar a essa condição.

É que o Brasil de depois da independência tem uma grande imprensa definitivamente alinhada com interesses que querem reconduzir o Brasil quase à condição de colônia. Para isso, conta não só com os neoliberais que hoje se agrupam aos neofascistas brasileiros.

Há uma escumalha do exército, generais saídos diretamente da ditadura, que se alinhavam ao lado de Sylvio Frota, um dos generais que sempre defendeu a tortura e que legou vários lugares-tenentes nas pessoas de oficiais hoje ao redor do atual presidente; e que mais uma vez se valerão dos símbolos da Independência para se aliar ao capital que quer o petróleo do pré-sal.

E que incentiva as queimadas na Amazônia, no Pantanal, nos Pampas, a invasão de terras indígenas, tudo enfim, que interessa às empresas estrangeiras que aspiram  explorar o rico solo brasileiro.

Dom Pedro I nunca se alinharia a eles. No entanto, a celebração de seu coração, emprestado ao Brasil pela cidade do Porto, se presta a todas as canalhices que o patriotismo encobre. O falso patriotismo, diria. Assim é que Dom Pedro não pode ser ajuizado historicamente como mereceria,

Lembro, muito a propósito, que Pedro, o Grande da Rússia, o homem que moldou o grande território eslavo, mas um assassino assumido, um déspota na acepção da palavra, nunca teve seus gigantescos monumentos ameaçados, nem mesmo pelos bolcheviques, que tomaram o poder durante certo tempo na ex-URSS.

Dom Pedro podia ser mulherengo e tratou realmente muito mal a Imperatriz Leopoldina, e muito bem a Marquesa de Santos. Mas nunca trocaria seu coração brasileiro (ou português) pela dinheirama que rendeu aos generais alinhados com o Jair Bolsonaro, o pior que um militar pode angariar: a pusilanimidade, prêmios polpudos e entreguismo.

Enfim, no bicentenário do Independência, o que ainda nos falta é justamente a independência total, algo que não entra na cabeça da soldadesca superior – hoje resolutamente tomados pela ideologia neoliberal. Serão derrotados pelas urnas, mas não se sabe até onde irão suportar um país que há dois séculos era declarado independente por um potentado português.

Independência bicentenária sim, mas claramente ameaçada e não por qualquer monarca, mas por um ex-capitão condenado, por terrorismo, mas logo absolvido pelo exército. E que talvez sonhe em ser um déspota como os muitos ditadores fantoches que até ontem assombravam a América Latina.

Enio Squeff é jornalista e artista plástico brasileiro, que vive em São Paulo


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