Gostava de ver legalizada a prostituição. Gostava de ver legalizado o casamento múltiplo. Gostava de ver legalizada a venda de drogas e o consumo delas. Gostava de ver diminuir muitas leis que conduzem pessoas à cadeia. Uma coisa é a violência, o desconforto provocado pelos ladrões, pelos bêbados, pelos condutores agressivos, mas outro assunto mais fácil é a fronteira do que é lícito e do que estamos dispostos a tolerar.
Há uma baliza que nos incomoda quando empurram, quando insultam, quando maltratam, mas depois há uma fronteira nebulosa quando discutimos a linguagem, quando falamos de género em vez de sexo, quando queremos usar terminologia explicativa para profissões de sempre.
A criada é uma técnica, o cobrador é um oficial, o varredor é um funcionário. Os grandes mestres da nebulosidade estão no Parlamento Europeu a montar leis que nos obrigam, a garantir certificações que nos manietam, a desenhar regras que nos bloqueiam.
Não queremos um Mundo sem leis e sem regras e sem balizas, mas queremos mais flexibilidade que é julgada e aferida pelos resultados, que é estudada e quantificada pelos registos.
Há um bom senso que nos permite viver em sociedade, mas não queremos vestir todos com fardas, não desejamos que todos tenham guias orientadoras, que tudo se baseie em definições padrão. Não queremos as maçãs todas iguais e do mesmo vermelho, não queremos bananas sempre curvadas do mesmo modo. Não queremos batatas redondas e sem terra.
A produção gerada por esta ideologia da concentração destruiu a mercearia em favor do supermercado, matou a Baixa das cidades para criar centros comerciais, impediu-nos de ser auto-suficientes na energia, atacou os consultórios para fazer grandes clínicas.
Gostava de ver legalizadas as drogas e esclarecidas as fronteiras do que é o crime sob seu efeito. Gostava de encontrar prostitutas que podiam passar recibos. Gostava de ver a Manuela com os seus três maridos.
Tudo o que não me prejudica, não interfere comigo, não bule o meu quotidiano, pode e deve ser liberalizado. Tudo o que é conflito, o que nos perturba o dia a dia, deve ser bem esclarecido.
A venda de álcool tem de ser aferida com os comportamentos dos utilizadores. Deve haver pessoas a quem não se pode vender, e que só por consumir são penalizadas. Penalizar para mim é trabalho, é deslocação, é redução de salário, não tem de ser cárcere.
Retirar pessoas dos seus espaços de conforto, deslocalizar, reduzir salário, mudar de funções, tudo pode ser caminho de castigo para quem ultrapassa a fronteira. Há um gigantesco abismo entre esta opção e a realidade certificadora de hoje.
A fronteira deve ser defendida pelos cidadãos, e por isso defendo a denúncia para aferir o nevoeiro, objetivando o que são as zonas de desconforto. Construir uma baliza a partir da análise da coerência do incómodo. Isto daria trabalho, mas permitia entender o limite com base na tradição e na tolerância.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.