SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE AO RAIO X - 10ª PARTE

Metade dos óbitos atribuídos ao SARS-CoV-2 estão agora fora dos hospitais. Mortes são por ou com covid-19?

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por Pedro Almeida Vieira // Setembro 11, 2022


Categoria: Exame

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Apesar da elevada imunidade vacinal – por ser um dos países do Mundo com maior taxa de vacinação –, e também natural – por mais de metade da população ter tido contacto com o vírus –, Portugal apresentou nos últimos meses um número de óbitos muito mais elevado do que nos períodos homólogos de 2020 e 2021. Mas também ressalta uma percentagem absurda de óbitos atribuídas à covid-19 que se registaram fora das unidades hospitalares do SNS. A Direcção-Geral da Saúde não explica por que razão metade das vítimas da covid-19 dos últimos meses (que seriam, assume-se, casos graves desta doença) não mereceu tratamento hospitalar, morrendo aparentemente sem assistência médica adequada.


Entre Março e Junho deste ano, metade dos óbitos atribuídos à covid-19 registados pela Direcção-Geral da Saúde ocorreu fora dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), de acordo com uma análise do PÁGINA UM, que cruzou dados oficiais da Direcção-Geral da Saúde (DGS) com a base de dados da Morbilidade e Mortalidade no Portal da Transparência, entretanto “ressuscitado” (ver N.D., em baixo).

Esta situação recoloca assim mais dúvidas sobre se os certificados de óbito para os casos fora das unidades hospitalares fazem directa referência ao SARS-CoV-2 como causa de morte, ou se optam por outras causas mais relevantes e a contabilização para as estatísticas da covid-19 se devem apenas ao facto de as pessoas falecidas estarem com teste positivo ao coronavírus.

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Embora a percentagem de óbitos por covid-19 fora das unidades do SNS – por exemplo, em lares ou em residências – tenha sido sempre relevante desde o início da pandemia, e nunca explicado pela DGS, a informação retirada da mais recente versão da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, gerida pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), mostra uma subida ainda mais inexplicável nos últimos meses.

Esta situação pode indiciar um de dois problemas; ou ambos: os óbitos atribuídos à covid-19 estão exagerados, por incluírem mortes fora das unidades hospitalares sem mais qualquer diagnóstico para além de um teste positivo ao coronavírus; ou há doentes-covid em situação grave a morrerem fora dos hospitais sem tratamento devido.

Óbitos atribuídos à covid-19 em Portugal por mês, com certificado nos hospitais e fora dos hospitais. Fonte: DGS e ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

De facto, uma elevada fracção de mortes atribuídas à covid-19 fora dos hospitais não é aspecto despiciendo, uma vez que a esmagadora maioria dos casos graves desta doença, que resultam em morte apresenta previamente um quadro clínico de insuficiência respiratória ou outros sintomas que recomendariam um internamento hospitalar.

Por outro lado, recorde-se que esta doença foi considerada de elevadíssima infecciosidade.

Portanto, coloca-se aqui saber se estas mortes se deveram mesmo à acção directa e letal do SARS-CoV-2 – e, portanto, uma elevada percentagem de doentes graves não teve apoio médico especializado que pudesse evitar a sua morte – ou se as mortes em causa ocorreram devido a outras comorbilidades relevantes e os óbitos acabaram por ser atribuídos à covid-19 apenas porque a vítima estava positiva naquela altura.

Certo é que, estranhamente, a mortalidade atribuída à covid-19 pelas autoridades de Saúde tem estado bastante superior em 2022 face aos períodos homólogos de 2020 (quando não existiam vacinas e a população estava naive) e de 2021.

Entre Março e Junho deste ano, a DGS diz terem morrido 3.063 pessoas por covid-19, enquanto no período homólogo do ano passado foram 720 e em 2020 atingiram os 1.036.

Ora, mas se se descontar aos óbitos atribuídos à covid-19 pela DGS entre Março e Junho deste ano aqueles que foram observados nos hospitais – pela consulta da base de dados da ACSS –, constata-se que terão morrido 1.531 pessoas fora dos hospitais, ou seja, 50% do total. No ano passado, no período homólogo esse valor tinha rondado os 6,4% (48 óbitos) e em 2020 atingiu os 34,4% (543 óbitos)

Ao longo da pandemia, o rácio óbitos fora / dentro do SNS foi sempre bastante variável, mas apenas esporadicamente alto em Maio de 2020 e no Inverno de 2020-2021, quando então os hospitais do SNS colapsaram, mas não tão persistente e elevado como em 2022.

Aliás, em Maio passado, o PÁGINA UM já noticiara que até Dezembro de 2021 uma em cada três vítimas atribuídas à covid-19 tinha falecido fora dos hospitais do SNS, mas esse rácio ainda aumentou mais este ano.

Evolução mensal da percentagem de óbitos atribuídos à covid-19 e ocorridos fora das unidades do SNS. Fonte: DGS e ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

A partir de Janeiro, somente em Março se registou uma percentagem de óbitos atribuídos à covid-19 fora do SNS abaixo dos 40%, chegando-se aos 57% em Junho (dos 999 óbitos, 429 ocorreram em hospital público e 570 fora dos hospitais públicos).

Sobre estas matérias, o PÁGINA UM pediu comentários e esclarecimento à DGS, com conhecimento para o Ministério da Saúde, mas não obteve (ainda) qualquer resposta.


N.D. O PÁGINA UM apresentou uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa contra a Administração Central do Sistema de Saúde por ter eliminado, e depois reposto de forma mutilada, a base de dados da Mortalidade e Morbilidade Hospitalar que constava no Portal da Transparência do SNS. Esta base de dados, que então tinha informação até Janeiro de 2022, servira para o PÁGINA UM publicar um conjunto de trabalhos de investigação sobre o desempenho do SNS durante a pandemia.

Entretanto, sem sequer informar o PÁGINA UM, a AACS indicou ao Tribunal Administrativo de Lisboa que já repusera a base de dados da Mortalidade e Morbilidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, indicando que o fizera no passado dia 12 de Agosto.

Esta data, cuja prova da veracidade não foi apresentada, é em todo o caso posterior à notícia do PÁGINA UM a denunciar as ligações de amizade entre o presidente da ACSS, Vítor Herdeiro, e a ex-ministra da Saúde Marta Temido (12 de Julho), e à notícia sobre a apresentação das bases de dados “mutiladas” (5 de Agosto). Aliás, a ACSS apenas comunicou ao PÁGINA UM, por ofício de dia 4 de Agosto, que disponibilizara três bases de dados (as mutiladas), e nunca mais nada comunicou, e devia.

O PÁGINA UM lamenta, aliás, a postura e a estratégia da ACSS, não apenas pela tentativa de persistir na mutilação (voltando agora atrás) como estar a convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que toda a informação requerida foi disponibilizada (foi feito um pedido de inutilidade superveniente da lide). Não é verdade. O PÁGINA UM tinha também pedido à AACS “a consulta presencial e/ ou eventual cópia digital da Base de Dados Central do GDH (Grupos de Diagnósticos Homogéneos), bem como do denominado BI-MH (Bilhete de Identidade para a Morbilidade Hospitalar”, porque servirá para a aferir se os valores divulgados agora no Portal da Transparência são reais ou “martelados”.

Como o PÁGINA UM revelará a partir de amanhã, pelo menos “estranhos” são.

Saliente-se que os processos judiciais do PÁGINA UM, que têm constituído uma “frente de combate”em prol da transparência da Administração Pública, são financiados pelos leitores através do seu FUNDO JURÍDICO, que já envolveu 12 processos de intimação e uma providência cautelar.

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