O PÁGINA UM pegou nos dados possíveis, aqueles poucos que o obscurantismo do Ministério da Saúde deixa escapar a contragosto, e revela como evoluiu a pandemia em Portugal, desde Março de 2020 até Junho de 2022. E mostra como não faz sentido andar a contar ondas (seis, dizem), e que é mais importante olhar para a forma como evoluíram as taxas de internamento e o risco de morte. E identifica ainda o momento exacto em que tudo mudou, para melhor: Novembro de 2021. Foi por causa das vacinas? Foi por causa da Ómicron? Não decida. Deixe a Ciência ter a palavra, embora seja conveniente que essa seja diferente daquela que maioritariamente se viu, desde 2020, a lançar “certezas” e conjecturar previsões à moda dos búzios e de relatórios-fantasma.
A Direcção-Geral da Saúde (DGS) não responde nem comenta. O Ministério da Saúde luta, afincadamente, no Tribunal Administrativo de Lisboa para não ceder documentos e bases de dados, nomeadamente as do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) e do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO). As autoridades de Saúde e de Estatística manipulam dados, de sorte que o cruzamento da pouca informação disponível se mostra complexa ou mesmo impossível.
Veja-se, por exemplo, o intencional desfasamento dos grupos etários em diversas bases de dados, para assim impedir o cálculos de indicadores epidemiológicos por entidades e pessoas independentes.
E neste cenário, last but not the least, ainda tivemos a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) a expurgar, durante meses, a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar (BDMMH), por estar, a dita base de dados, a comprometer uma certa “narrativa oficial” sobre o desempenho oficial do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Entretanto, “regressou” a dita base de dados, há uns poucos dias, depois de muita pressão e denúncia do PÁGINA UM. Mas com dados estranhos, como a estranha diminuição abrupta dos internamentos e mortes hospitalares sobretudo nos últimos meses.
Porém, acreditando que estamos perante dados oficiais credíveis – até prova em contrário ou admissão de “martelanço” –, a ressuscitada BDMMH permite, em cruzamento com alguns dados básicos da DGS relativos à covid-19, estabelecer uma evolução da pandemia em Portugal, desde Março de 2020 até finais de Junho deste ano, em diversos indicadores relevantes: incidência, risco de internamento, risco de morte (taxa de letalidade) e também de mortalidade hospitalar.
Nesta análise deixaremos a mortalidade hospitalar associada à covid-19 para outra oportunidade.
Uma questão relevante em Epidemiologia, sobretudo quando se trata de doenças causadas por vírus, é a assumpção de que um agente ou uma doença não são imutáveis. No caso do SARS-CoV-2, e pese embora todo o alarmismo que o rodeou – em que esteve sempre omnipresente o receio de sempre surgir uma variante pior do que a anterior, mesmo se a História mostrava o contrário noutras situações –, seria, na verdade, mais do que expectável que a sua transmissibilidade e letalidade do vírus evoluísse nestes dois domínios.
E, nessa medida, a covid-19 de 2020 fosse diferente da covid-19 de 2021, e esta fosse diferente da covid-19 de 2022, até estabilizar numa fase endémica.
Será que foi?
Vejamos.
Observando em detalhe a evolução mensal dos casos positivos – e sem prejuízo das sempre criticáveis políticas de testagem, que se tornaram um negócio –, mostra-se evidente que, do ponto de vista da incidência, e numa perspectiva holística, nunca se poderá falar de seis ondas – o número que a generalidade dos “especialistas”, políticos e imprensa contaram desde Março de 2020. Na verdade, nem cinco tivemos, nem quatro; quando muito, houve duas ou, no máximo, três.
Por exemplo, a dita “primeira onda” que começou em Março de 2020 e se estendeu até Maio daquele ano contou apenas um total de cerca de 33 mil casos, ou seja, pouco mais de 10 mil por mês. Ora, essa média mensal na, incorrectamente chamada, primeira onda é praticamente similar à média diária em Abril de 2022, o mês do primeiro semestre deste ano com menor incidência cumulativa.
Se considerarmos os casos positivos de Janeiro de 2022 (cerca de 1,3 milhões), praticamente todos da variante Ómicron, verificamos também que foram em maior número do que os casos contabilizados em todos os longos meses em que dominaram as outras variantes.
Nessa perspectiva, nem os surtos do Inverno de 2020-2021 – que se destacam dos períodos imediatamente anteriores e posteriores – se mostra comparável à verdadeira onda registada no primeiro semestre de 2022, onde cerca de 37% da população portuguesa foi “infectada”, o que dá uma média mensal de 6%. Só em Janeiro passado, chegou a mais de 12%.
Nos 22 meses anteriores (desde Março de 2020 até Dezembro de 2021) tinha sido “infectada” cerca de 14% da população, dando assim uma média mensal de 0,6%. Mesmo as “infecções” registadas em Janeiro de 2021, que se destacou de todos os outros meses anteriores a 2022, somente “atingiram” 3% da população.
Deste modo, mostra-se difícil defender agora a existência de mais do que duas ondas de “casos positivos” (Inverno de 2020-2021 e primeiro semestre de 2022), e quando muito três, se se admitir que no primeiro semestre de 2022 se conseguem identificar duas.
A evolução da pandemia veio, na verdade, demonstrar que olhar para “ondas de casos” – ou “pandemia de testes”, como se chegou a chamar, com propriedade – foi um absurdo, uma vez que nunca houve nem uma correlação entre casos e internamentos nem entre casos e óbitos (entre internamentos e óbitos, já lá iremos…)
De facto, observando a evolução do número de internamentos por mês atribuídos à covid-19, de acordo com a BDMMH, a mediana rondou os 1.800 – ou seja, em metade dos 28 primeiros meses da pandemia (Março de 2020 a Junho de 2022) nunca se ultrapassou aquele número. Por outro lado, a média mensal ficou um pouco aquém dos 2.500 internamentos.
Se considerarmos a fasquia dos 3.000 internados, somente no período de Novembro de 2020 até Fevereiro de 2021 se registou um fluxo muito mais significativo de internamentos: acima dos 6.000 nos dois últimos meses de 2020 e acima dos 10.000 nos dois primeiros meses de 2021.
Nessa medida, a definirem-se “ondas de internamentos” (que significam, além de um indicador da agressividade do vírus, picos de pressão hospitalar), então apenas houve uma em Portugal: iniciada em Outubro de 2020 (2.312 hospitalizações) e que findou em Março do ano seguinte (2.760), tendo causado hospitalizações acima dos 6.000 internamentos em Novembro e Dezembro e atingido o auge em Janeiro e Fevereiro de 2021 (com mais de 10.000 internamentos em cada mês).
A essa onda única sucedeu uma relativa estabilidade nos internamentos, quase indiferente aos casos positivos. No último ano com dados, entre Julho de 2021 e Junho de 2022, contabilizam-se seis meses com internamentos entre os 1.700 e os 2.000, havendo apenas dois meses (Janeiro e Fevereiro) excedendo aquela fasquia.
Convém, contudo, salientar que Janeiro e Fevereiro deste ano tiveram uma incidência de infecções por SARS-CoV-2 cinco vezes superior ao período invernal homólogo do ano anterior (1,97 milhões de casos positivos vs. 384 mil)
No caso da evolução da mortalidade, embora ainda seja necessário a DGS esclarecer muitos aspectos – por exemplo, a elevada fracção de óbitos registados fora das unidades hospitalares (8.549 mortes, no total) e o contributo de comorbilidades relevantes para a causa de morte –, a covid-19 foi efectivamente uma causa de morte muito relevante em determinados períodos, se comparada, por exemplo, com as doenças respiratórias “associadas” à gripe.
No início da pandemia (Abril de 2020), a mortalidade atribuída à covid-19 pode ser considerada bastante relevante por ser superior à expectável face à pneumonia, mas foi no período de Outubro de 2020 a Março de 2021 que a situação assumiu um cenário mais grave.
Neste último período, a mortalidade associada ao SARS-CoV-2 foi, sem dúvida, anormalmente elevada, em especial nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2021, mesmo tendo em conta a estação do ano (Inverno). Em todo o caso, dever-se-ia encontrar uma explicação plausível para se contabilizarem, naqueles dois meses, respetivamente 2.557 e 1.066 óbitos fora de unidades hospitalares do SNS.
Após Março de 2021, a mortalidade atribuída à covid-19 não deve ser considerada anormal do ponto de vista da Saúde Pública, se atendermos que esta doença veio “substituir”, em grande medida, uma parte das doenças respiratórias – sendo disso prova a redução abrupta e persistente dos internamentos e óbitos associados a pneumonias e outras doenças similares.
Comparando o primeiro semestre dos três anos de pandemia (2020-2022) com o primeiro semestre dos três anos imediatamente antes (2017-2019), as mortes por doenças do aparelho respiratório diminuíram 24% (14.445 vs. 22.567 óbitos, ou seja, menos 8.131 mortes).
Os óbitos atribuídos à covid-19 no período invernal de 2021-2022 – um total de 3.554 mortes entre Novembro de 2021 e Março de 2022 – já não parecem assumir valores anormais, considerando o quase desaparecimento da época gripal (e das mortes a si associadas). A mortalidade nos meses seguintes pode classificar-se como elevada em função da época do ano, mas, como já referido, deveria ficar esclarecida se a elevada fracção de óbitos atribuídos à covid-19 que ocorreram fora dos hospitais do SNS não “inflacionou” os efeitos do SARS-CoV-2.
Em todo o caso, a evolução dos números da mortalidade atribuída à covid-19 (em meio hospitalar e fora dos hospitais) apresenta tendência para estabilizar, em termos absolutos, desde Dezembro do ano passado.
Contudo, nos quatros meses em que se mostra possível comparar três anos sucessivos (Março a Junho), verifica-se que 2022 (já com vacinação plena, incluindo reforços, em quase toda a população “vacinável”) foi aquele com maior número de óbitos por covid-19 (3.063), contrastando com os 750 óbitos em 2021 (contudo, após o morticínio de Janeiro e Fevereiro) e com os 1.579 óbitos de 2020 (no início da pandemia).
Esta análise da evolução dos casos positivos, das hospitalizações e dos óbitos serve, na verdade, sobretudo como base para a criação de indicadores epidemiológicos que, de forma simples, ajudam a demonstrar que a covid-19 não é hoje, em 2022, a mesma de “antanho”. E também permite aferir, à falta de transparência do Ministério da Saúde em disponibilizar dados discriminados do SINAVE e do SICO, os momentos-chaves da mudança.
Em suma, identificar os períodos em que a covid-19 deixou de ser um problema de Saúde Pública.
Um dos indicadores mais interessantes que deveriam ser disponibilizados pela DGS – e nunca o foram – é o do risco de internamento, para o qual basta uma análise fina aos dados do SINAVE, de modo a saber, em cada período, a probabilidade de um infectado ser hospitalizado.
Perante o lamentável obscurantismo da DGS – e a demora do Tribunal Administrativo em responder à intimação apresentada pelo PÁGINA UM –, pode-se, em todo o caso, “caçar com gato”, e estimar um valor próximo através do cálculo da razão entre internamentos e casos positivos (infelizmente, apenas para a população em geral, uma vez que os grupos etários para os casos são diferentes dos que se referem aos internamentos).
Referia-se que existe um enviesamento neste indicador calculado desta forma – fazendo com que não constitua um risco efectivo de internamento –, porque existe um deferimento entre a infecção e o internamento (e a eventual morte). Deste modo, os infectados de um período podem ser os internados do período seguinte. Ora, apenas com o SINAVE se poderá apurar esse indicador com rigor.
Colocadas estas premissas, mesmo assim o indicador que se calcular constitui uma aproximação bastante interessante da realidade, permitindo identificar cinco períodos distintos ao longo da pandemia.
Na primeira fase da pandemia, até Agosto de 2020, o risco de internamento dos “infectados” (medido pelo número de casos positivos) foi relativamente elevado, sobretudo em Abril e Maio, quando se atingiu um risco de 14,2% e 18,6%, respectivamente. Neste último mês atingiu-se o valor mais elevado de risco de internamento ao longo de toda a pandemia, embora se deva considerar que, neste período, se optava pela hospitalização, por prudência, mesmo em casos não demasiado graves.
Depois deste período, o risco de internamento situou-se entre os 3% e os 6% no período de Setembro de 2020 a Janeiro de 2021, aumentando depois, num terceiro período, para 13,2% em Fevereiro de 2021 e para 15,9% no mês seguinte.
Um quarto período começou em Abril – ainda de transição, com o indicador a baixar para 6,1% –, estendendo-se até Outubro de 2021, com o risco de internamento a variar entre os 2% e os 5%. Tendo em consideração que, neste período de Maio até Outubro de 2021, a taxa de vacinação abrangia já praticamente toda a população mais vulnerável (acima dos 65 anos), parece evidente advir daí uma redução no risco de internamento: foi de 2,8%, que confronta com os 5,6% do período homólogo do ano anterior (ainda sem vacina). Porém, dir-se-á sempre que essa redução do risco entre estes períodos homólogos (com e sem vacina) é de 50%.
De facto, somente a partir de Novembro de 2021, e especialmente a partir do mês seguinte, o risco de internamento diminuiu fortemente. Em Dezembro do ano passado situou-se apenas nos 0,7% – ou seja, em cada 1.000 infectados, somente sete necessitaram de internamento –, estando assim pela primeira vez abaixo de 1%. Ao longo de 2022, este rácio esteve sempre inferior a 0,6%.
Pergunta-se: foi por causa da vacina ou foi a menor agressividade da variante Ómicron? – eis a questão dos milhões de euros que a pandemia ainda faz rodar em negócios.
Certo é que, se for a vacina, os seus benefícios custaram muito tempo a chegar; se não tiver sido a Ómicron a constituir o game changer, então foi uma coincidência extraordinária as vacinas se terem tornado eficazes (em evitar o risco de internamento) no exacto mês em que aquela nova variante surgiu e se tornou rapidamente dominante (e muito mais transmissível).
Em todo o caso, a evolução da pandemia, mesmo antes do surgimento da Ómicron, evidencia que as vacinas contra a covid-19 tiveram um efeito benéfico, embora temporário, na redução significativa da letalidade.
Com efeito, e com similares premissas às que se apresentaram para o risco de internamento – e face à impossibilidade, por causa da política de obscurantismo da DGS, de analisar a evolução por faixa etária –, pode-se estimar também a taxa de letalidade global (para toda a população), através do cálculo do rácio óbitos por infectados em cada mês.
Esse indicador permite confirmar, atendível a estratégia de testagem, que a taxa de letalidade – ou o risco de morte em caso de infecção – foi bastante elevada (acima de 1%) até Março de 2021, com alguns períodos com valores preocupantes: Março a Maio de 2020 e Dezembro de 2020 a Março de 2021.
A partir de Abril de 2021, a taxa de letalidade ficou sempre abaixo de 1%, o que apenas sucedera no primeiro ano da pandemia num curto período (Setembro e Outubro de 2020).
Contudo, a partir de Abril de 2021 – com o processo de vacinação em “velocidade de cruzeiro” –, assistiu-se, aparentemente, a uma progressiva redução do efeito protector das vacinas. Isto porque a taxa de letalidade aumentou sensivelmente a partir dos meses de Junho e Julho daquele ano (0,23% e 0,30%, respectivamente) a atingir os 0,86% em Outubro.
E eis que a seguir, repentinamente, baixou de novo, quedando-se nos 0,49% em Novembro, e depois ainda se reduziu nos meses seguintes. Ao longo de 2022, a taxa de letalidade da covid-19 variou entre os 0,08% em Janeiro e os 0,22% em Junho.
Não havendo informação que permita, de forma expedita, calcular a taxa de letalidade por grupos etários, pode-se sempre dizer que para os mais idosos esse indicador será agora, certamente, inferior a 2%, quando nas primeiras fases da pandemia se situava nos 15%. Nos mais jovens continua irrelevante, porque sempre foi.
Também para o risco de morte, a mesma pergunta: qual a causa desta favorável evolução? As vacinas – que começaram a ser administradas no final de Dezembro de 2020 e tiveram já vários reforços – ou a variante Ómicron, que surgiu exactamente na altura que a taxa de letalidade parecia ir disparar com a chegada do Inverno?
Em tempos normais, a Ciência debateria essa questão de forma aberta, com base em hipóteses e com todos os dados (leia-se, informação oficial) em cima da mesa, sem truques, sem omissões sem necessidade de intervenção do Tribunal Administrativo para se aceder a informação oficial, sem tramoias de burocratas que “expurgam” bases de dados para satisfazer amigos governantes.
Mas, infelizmente, uma coisa esta pandemia nos demonstrou: a Ciência tornou-se maleável e submissa ao poder político, e, nessa medida, jamais desejará agora discutir abertamente alguns temas, que se tornaram tabu, porque comprometedores da sua independência e idoneidade.
Quando se diz Ciência, estamos a falar dos cientistas que, por acção ou omissão, mandaram os seus princípios às malvas.