VISTO DE FORA

Que fazer com a propriedade privada dos outros?

person holding camera lens

por Tiago Franco // Setembro 17, 2022


Categoria: Opinião

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Tenho por hábito escrever sobre o que me rodeia e sem grandes amarras no pensamento. Quem me conhece sabe a quem entrego o meu voto e quem me vai lendo, por esta altura, também já deve ter percebido. E eu acho isso óptimo.

Gosto de assumir as minhas convicções e, em simultâneo, o meu direito ao pensamento livre. Não concordo ou discordo de algo por ser da ideologia política A, B ou C. Concordo com o que me parece ser lógico, sensato e parte integrante daquele que seria, idealmente, o meu modelo de sociedade.

white and red wooden house miniature on brown table

Imagino que todos tenhamos um modelo de sociedade na cabeça que, dificilmente, será retratado integralmente no programa de um partido político.

Isso significa, em resumo, que PSD e Liberais dizem coisas, às vezes, com as quais concordo. E PS, PCP e BE dizem coisas, às vezes, com as quais discordo. Mentiria se não dissesse que me custa mais quando aqueles mais próximos daquilo que defendo fazem ecoar asneiras na Assembleia da República.

Dito isto, temos o que Joana Mortágua disse, na semana passada, em discurso no Parlamento, que a falta de alojamento para os recém-entrados no ensino superior se devia à opção dos senhorios de retirar as suas casas do mercado de arrendamento de longa duração e colocá-las no alojamento local. Pretendia o BE que o Governo travasse esta situação.

É uma espécie de tiro no pé, desde logo do Bloco de Esquerda, mas também da esquerda de uma forma geral.

Compreendo que a minha opinião no tema não vá de encontro à dos que, por norma, votam ao meu lado, mas enfim, como expliquei ali em cima, penso e respondo pelas minhas ideias.

people sitting on chair in front of computer

O BE tem razão quando diz que o desvio de casas para o alojamento local prejudica os estudantes. É factual. São menos propriedades disponíveis no mercado.

Agora, não pode em momento algum – ou não deve – sugerir que seja o Governo a decidir o que fazer com a propriedade alheia. Das duas uma: ou somos contra a propriedade alheia e vivemos todos em colectividades – o que está longe da sociedade que defendo –; ou, se permitimos a existência de propriedade privada, não podemos depois decidir o que eles devem fazer.

Joana Mortágua, ou o BE, parecem cair no limbo das opiniões vezes em conta. Há uma certa dificuldade de assumirem uma posição, se esta for pouco popular, criando uma ideologia de agradar a todos.

O resultado são as contradições em que se perdem. Por exemplo, Joana Mortágua tem uma herdade no Alentejo; não consta que a tenha convertido em abrigo quando os nepaleses dormiam em contentores em Odemira.

Residências universitárias, por exemplo, seriam uma das soluções deste problema que Joana Mortágua aponta.

green grass field with trees and buildings in distance

Investimento a sério num país que precisa rapidamente de parar de exportar universitários.

Há, de facto, muita coisa que o Governo pode fazer, como seja o combate à especulação, tanto no mercado de arrendamento como no da compra.

Bem sei que há uma parte da esquerda que se indigna com a propriedade privada. Eu não. Se uma pessoa trabalha para comprar algo, ou recebe de uma herança familiar, beneficiando do trabalho dos seus antecessores, não vejo problema algum. Se alguém trabalha e investe numa casa, ou duas, ou três, é porque se esforçou para lá chegar; é porque estudou e trabalhou para isso.

Nem todos chegamos da China e compramos casas a dinheiro para obter vistos Gold. Nem todos temos o acesso aos créditos do BES como se fôssemos um Vieira ou um Vasconcellos.

A maior parte trabalha uma vida para pagar créditos e construir qualquer coisa. Nada disso contraria aquilo que imagino para uma sociedade, e lamento se alguma esquerda não vê para lá disso. Nem será o caso do BE que, convenhamos, gosta bastante da propriedade privada embora repita ad nauseam este slogan dos pobres e desamparados.

group of people using laptop computer

Enfim, onde começa o meu “problema” é no aproveitamento desmesurado da falta de habitação por causa dos preços especulativos. E, por favor, não me digam que é uma questão de mercado ou da lei da oferta e da procura. É um simples aproveitamento em regime de cartel para cobrar preços absolutamente escandalosos; no fundo, como acontece com o cartel das petrolíferas. Todos se queixam, mas o princípio é essencialmente o mesmo.

Era aqui – na disparidade de preços quando comparados com a realidade nacional – que o governo deveria intervir.

Mas claro, todos percebemos que a especulação imobiliária se traduz em avultados impostos, e, portanto, é outra galinha dos ovos de ouro para o PS (ou PSD) distribuírem pelas habituais clientelas das parcerias público-privadas (PPPs), bancos, Mários Ferreiras, auxiliares dos auxiliares de secretários de Estado, e por aí fora. Certo como o destino, é saber que esse dinheiro não chega onde deveria – neste caso, à Educação.

books on brown wooden shelf

Era aqui, nestes pontos, que eu esperaria, também, que o BE gritasse a plenos pulmões. Em vez de tentarem mexer na propriedade privada dos outros, poderiam e deveriam exigir, isso sim, investimento na Educação, de forma que Portugal tivesse, finalmente, um sistema de ensino universal.

Dizem-me que já tem, que a Educação é tendencialmente gratuita. Mas não é. Vejo as diferenças, diariamente, entre as duas realidades em que me desloco: Suécia e Portugal.

Na Suécia temos creches grátis em cada bairro e um abono mensal de 100 euros, ensino básico e secundário sem qualquer custo (livros, comida, computadores) e universidades gratuitas, para além da possibilidade de um empréstimo estatal (um salário) disponível para cada aluno do Ensino Superior, assim o deseje contrair. É este o conceito de Educação universal. A garantia que o filho de um padeiro e o filho de um advogado recebem as mesmíssimas condições no ponto de partida.

white red and green map

Eis a garantia, por lei, que o filho de um pescador só será pescador se assim o entender. Tudo feito com o Estado Social, a solidariedade dos escalões progressivos nos impostos e uma carga fiscal totalmente direcionada para a população.

Claro que, com isto, as estradas suecas não chegam aos calcanhares das portuguesas, mas minhas senhoras e meus senhores, isso é que são escolhas que decidem o futuro das gerações seguintes. A Suécia apostou na formação da população; nós, em Portugal, apostámos na Mota-Engil.

Opções políticas, dizem uns – corrupção da boa, digo eu.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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