Quase 20% das famílias portuguesas está a receber descontos na factura da electricidade por ter rendimentos muito baixos. Uma análise detalhada do PÁGINA UM identificou as regiões e concelhos com as maiores carências, quase todas no Norte e Centro do país, onde faz mais frio no Inverno. Será que as famílias mais carenciadas aguentarão a prevista escalada de preços por força da galopante inflação?
Uma em cada cinco famílias estará a beneficiar de tarifa social de electricidade (TSE) – um apoio automático do Estado que, na verdade, revela uma situação de grande debilidade financeira que coloca a população portuguesa numa das piores situações europeias em relação à denominada pobreza energética. Com a aproximação do Inverno e a galopante taxa de inflação, a probabilidade de um impacte na Saúde Pública pode ser brutal, tendo em conta que os internamentos e a mortalidade aumentam com o frio.
De acordo com cálculos do PÁGINA UM, 19,3% das famílias portuguesas encontram-se abaixo de um limiar de rendimentos que as levam a necessitar de apoio estatal.
A situação mostra-se mais grave nas regiões Norte e Centro do país, atingindo os 32,4% – quase uma em cada três famílias – no distrito de Vila Real, e estando acima dos 20% nos distritos de Bragança (27,9%), Viseu (25,0%), Guarda (24,5%), Viana do Castelo (23,0%), Braga (21,2%) e Porto (20.9%).
As regiões com menor percentagem de aglomerados familiares com direito a TSE são, curiosamente, o Alentejo (Évora, Beja e Portalegre), e os distritos de Lisboa e de Faro.
Face ao desconhecimento do número de contratos de consumo doméstico por concelho por parte da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), o PÁGINA UM considerou, para o cálculo das estimativas, o número de contratos beneficiários de TSE – disponibilizados para o mês de Junho – e o total das famílias apuradas pelos Censos de 2021.
Por concelho, três integrados no distrito de Vila Real se destacam em termos de percentagem de famílias a necessitarem de apoio estatal para pagar as contas de electricidade: Boticas (60%, com 1.225 contratos de TSE num total de 2.057 famílias), Montalegre (52%, com 2.042 contratos de TSE num total de 3.943 famílias) e Valpaços (48%, com 3.079 contratos de TSE num total de 6.472 famílias).
Acima dos 33% encontram-se ainda 15 municípios: três do distrito de Viseu: Vila Nova de Paiva (44%), Sátão (39%) e Resende (38%); mais três de Vila Real: Mondim de Basto (38%), Chaves (35%) e Santa Marta de Penaguião (33%); quatro de Bragança: Vila Flor (36%), Alfândega da Fé, Vimioso e Macedo de Cavaleiros (todos com 34%); um de Braga: Celorico de Basto (35%); três da Guarda: Sabugal (35%), Aguiar da Beira (34%) e Vila Nova de Foz Côa (33%); e ainda um do Porto: Baião (34%).
De entre os concelhos com menores percentagens de família com TSE salientam-se Castanheira de Pêra (9%), Penela (10%), Odemira e Alcoutim (ambos com 11%) e Arronches, Figueiró dos Vinhos, Santiago do Cacém, Estremoz, Coruche e Alcácer do Sal (todos com 12%).
Dos concelhos de maior dimensão, Lisboa tem 14% das famílias com TSE (34.944 contratos em 242.618 famílias), Sintra conta 21% (32.174 contratos em 153.234 famílias), Vila Nova de Gaia 20% (24.305 contratos em 121.311 famílias), Porto tem 18% (18.316 contratos em 102.227 famílias) e Cascais 16% (13.783 contratos em 86.497 famílias).
Recorde-se que desde Julho de 2016, o acesso ao benefício da tarifa social da energia eléctrica e também de gás passou a ser concretizado por um mecanismo de reconhecimento automático, através da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social.
São beneficiários os titulares de contratos domésticos que recebam complemento solidário para idosos, rendimento social de inserção, prestações de desemprego, pensão social de velhice ou invalidez ou o agregado familiar com um rendimento anual igual ou inferior a 5.808 euros, acrescido de 50% por cada elemento que não tenha qualquer rendimento, até ao máximo de 10.
No caso da TSE, o benefício consiste, actualmente, num “desconto de 33,8 % sobre as tarifas transitórias de venda a clientes finais de eletricidade, excluído o IVA, demais impostos, contribuições, taxas e juros de mora que sejam aplicáveis”.
Apesar da perda generalizada de rendimentos durante a pandemia, até houve uma redução global de beneficiários do TSE. De acordo com os dados da DGEG, a TSE reduziu-se de 780.255 contratos no final do primeiro trimestre de 2020 para 766.930 em Junho deste ano, ou seja, uma diminuição de 1,7%.
Em 25 de Agosto passado, Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e Acção Climática, anunciou, a pretexto do aumento do preço dos combustíveis e electricidade, um conjunto de medidas de mitigação da inflação, nomeadamente a possibilidade de transição para o mercado regulado, a colocação de um preço máximo do gás doméstico e do apoio da Bilha Solidária. Além disso, O Governo alterou o IVA da electricidade de 23% para 6%, mas apenas para os primeiros 100 KWh, o que, de acordo com a DECO, resultará “numa poupança média mensal de 1,08 euros”.
O impacte nos próximos meses da subida do preço da electricidade pode ser significativo se o Inverno for particularmente frio, agravando assim os efeitos da denominada “pobreza energética” de Portugal, com consequências tanto no conforto como mesmo da taxa de mortalidade.
Nos últimos anos, de acordo com uma análise de Luísa Schmidt e Ana Horta, investigadoras do Instituto de Ciências Sociais, os preços da eletricidade para os consumidores domésticos em Portugal têm sido dos mais elevados da União Europeia, muito por via dos impostos.
Em 2019, o Eurostat indicou que os impostos e taxas incluídos nas faturas da eletricidade dos portugueses constituíram 55% do preço final. “Assim, num contexto sociocultural em que se considera normal ter frio em casa no inverno, muitos portugueses optam por reduzir ao mínimo os custos com aquecimento”, salientam as duas investigadoras.
Alguns dos indicadores compilados pelo Instituto de Ciências Sociais mostram que Portugal se encontrava já numa situação complexa do ponto de vista do conforto energético, com 18,9% dos portugueses incapazes de manterem a casa adequadamente quente, valor que confronta com 7% na União Europeia. As investigadoras consideraram também que, além do problema de rendimento das famílias, também se coloca o óbice da “literacia” energética, ou seja, as pessoas ignoram, em muitas situações, quais os tarifários mais adequados e outras medidas de poupança e de eficiência energética.