VISTO DE FORA

Mentirosos pela Verdade 

person holding camera lens

por Tiago Franco // Setembro 25, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Passei o fim-de-semana a construir um bunker e a actualizar as reservas de papel higiénico, pelo que consegui ler pouco daquilo que vocês escreveram. Mas ouvi muito, porque, para me armar em tecnológico, tenho sempre o Bluetooth ligado às orelhas.

Se fosse fazer um ranking do que mais gostei, à la Catarina Furtado nos tempos do Top+ (we go way back!), diria que o mais tocado esta semana foram os Mentirosos pela Verdade.

man in black shorts standing on beach shore during daytime

Os Mentirosos pela Verdade são um clã – sem o sonho do GTI, atente-se – que patenteou, ali desde Abril de 2020, a Verdade Única e Universal (VUU).

Eram as pessoas que, em Maio de 2020, nos juravam que a Suécia matava velhinhos para poupar nas pensões. Ou que eram criminosos por não fecharem escolas (com 0% de mortes por covid-19). Ou, ainda, que colocavam a Economia antes das pessoas.

Entretanto, quando a factura chegou a Portugal, tanto em dívida como no número de mortos, lá acabaram por perceber as evidências e começaram a gritar com o Governo pela falta de apoios para debelar a crise.

A mesma crise que aplaudiram e agradeceram, sentados nas varandas, durante o confinamento.

Entretanto a Suécia saiu da pandemia de pé, e, de joelhos, os Mentirosos pela Verdade foram em busca de novo tema.

aurora borealis over body of water during nighttime

Chegada a guerra da Ucrânia e novo palco para verdades inquestionáveis. Desde logo, o novo conceito de solidariedade. Temos que ser parte activa. Se não formos, apoiamos Putin. Se questionarmos porque andámos 70 anos a ignorar outros invadidos, somos whataboutistas. Se não tivermos particular admiração por nenhuma das “democracias” no Donbass, somos cúmplices.

Se apoiarmos refugiados ucranianos, devemos fazê-lo porque eles não escolheram a guerra. A russos não podemos, porque, lá está, eles não fizeram nada para a evitar.

Afinal, o que é que lhes custava entrar no Kremlin e rebentar com aquilo tudo? O Tom Cruise conseguiu essa proeza, na Missão Impossível 4? Não deve ser assim tão difícil! Tão impossível!

Se homens ucranianos choram na fronteira da Polónia, porque o Zelensky lhes fechou a fronteira, apoiamos o Zé. Se homens russos choram na fronteira da Finlândia, porque a Sanna lhes fechou a porta, apoiamos a Sanna.

blue and brown hand painting

Se a NATO envia armamento pelos seus estados-membro e a União Europeia suporta financeiramente, e, apenas graças a essa ajuda, a Ucrânia consegue resistir, logo surgem os Mentirosos pela Verdade a insistir que este é um conflito entre dois países.

Quem não defende a invasão, mas também não quer ver a União Europeia envolvida, recordo, é um putinista. Lembro-me que no auge do whataboutismo diziam os analistas Mentirosos pela Verdade que os ucranianos estão mais perto, e que nada daquilo era comparável à Faixa de Gaza, lá tão longe onde o Criador (louro de olho azul) foi perder as botas entre as palhas em que dormia.

A mesma verdade já não se aplica a russos – e compreende-se. São louros, mas estão geograficamente mais longe de Bruxelas. Especialmente aqueles da Sibéria que, ainda por cima, são meio achinesados. Estavam a pedi-las. Que fujam para Ulambatar e comecem uma tribo nómada.

people having rally in the middle of road

Hoje dizem-nos que o referendo no Donbass é ilegal. E acertam. É factual. É uma tentativa tosca e despudorada de anexação e violação do direito internacional.

Em seguida falam os membros da NATO dizendo que se o Donbass for anexado, a reacção dos parceiros será rápida e poderosa.

Dos parceiros que não participam, não financiam, não planeiam e não contribuem para a guerra… É isso, não é? Por favor, não se esqueçam desta parte.

Não deve ser fácil, de facto, ver o Mundo só com duas cores. Mas, se for esse o caso, junta-te ao clã. A vida é muito mais fácil. As certezas quase eternas. Quase, aviso.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.