covid-19 em junho: investigadores apontavam 790 mortes em festividades e levantamento de restrições

Instituto Superior Técnico diz agora que afinal fez “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”

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Divulgado há menos de dois meses, um alarmista relatório do Instituto Superior Técnico, que “responsabilizava” as festividades e festivais de música de Junho de terem causado centenas de mortes, afinal parece que não foi bem um relatório. No Tribunal Administrativo de Lisboa, uma das mais credenciadas instituições universitárias públicas do país, que tem um protocolo com a Ordem dos Médicos, diz agora que só fez um “esboço embrionário”, e que não há relatório algum. A Lusa, porém, garantiu ao PÁGINA UM que “o relatório existe, naturalmente”. Moral da história: cerca de uma dezena de órgãos de comunicação social divulgaram, como verídico, um estudo científico alarmista, afinal nunca validado, e que, aparentemente, nem sequer existiu, apesar de a Lusa ter feito citações na sua notícia original. Eis um caso paradigmático do estado da Ciência e do rigor informativo do Portugal de hoje.


Foi apresentado taxativamente como um relatório do Instituto Superior Técnico (IST). Em 28 de Julho passado, a agência noticiosa Lusa – detida maioritariamente pelo Estado – divulgou um take, replicado por cerca de uma dezena de órgãos de comunicação social, revelando que o IST estimava que a realização em Junho das festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio tinha sido a causa da ocorrência de cerca de 340 mil casos de covid-19.

E mais: citando frases do relatório – assim apresentado sempre nas notícias divulgadas pela imprensa –, salientava-se que com medidas sem impacto económico, designadamente o uso de máscara e a testagem gratuita, ter-se-ia registado igualmente uma sexta vaga, devido à variante Ómicron, mas “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida”.

Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer agora o Tribunal que aquilo que fez foi apenas “um esboço embrionário”.

O estudo na base do relatório – que a direcção editorial da agência noticiosa garantiu em 2 de Agosto passado ao PÁGINA UM que “existe, naturalmente, caso contrário a Lusa não teria feito notícia” – ainda terá permitido que os peritos apontassem “a morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados às festas populares de Junho.”

Mas, afinal, a história estava mal contada. Muito mal contada. Por todos os envolvidos.

Em resposta ao Tribunal Administrativo de Lisboa – no seguimento de uma intimação feita pelo PÁGINA UM no início deste mês por recusa de acesso aos diversos relatórios e dados em bruto produzidos por esta instituição universitária pública desde 2021 –, o gabinete jurídico do IST afiança que “o grupo de investigadores (…) [encabeçado pelo próprio presidente, o catedrático Rogério Colaço] apenas realizou um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede do Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusa divulgar os estudos e os dados. O Tribunal Administrativo decidirá se obriga ou não uma instituição pública a ceder dados científicos para validação pública.

Repita-se: “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

Destaque-se de novo: “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

Com essa manobra, o IST está a procurar convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa a não o obrigar a disponibilizar qualquer relatório nem dados em bruto, uma vez que a lei determina que “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” não são classificados como documentos administrativos.

Trecho das alegações do IST junto do Tribunal Administrativo de Lisboa a garantir que realizou “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. A Lusa garante que viu um relatório, e até o cita.

Ou seja, o IST pretende ver reconhecido pelo Tribunal Administrativo de Lisboa que o relatório que a Lusa garante existir, afinal não existe porque não passa afinal de um esboço – ou menos do que isso: “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

No entanto, antes das insistências do PÁGINA UM em finais de Junho junto do investigador Henrique Oliveira – e mais tarde junto do próprio presidente do IST, Rogério Colaço –, nunca aquela instituição universitária renegou as notícias da Lusa e dos outros órgãos de comunicação social.

Pelo contrário, na troca de e-mails com Henrique Oliveira, este investigador do IST mostrava que conhecia o impacte mediático da divulgação do take da Lusa.

Num dos e-mails ao PÁGINA UM, este investigador, que assume ser “o único do grupo de trabalho [de cinco elementos] mandatado a falar sobre esses assuntos de análise”, escreveu o seguinte: “ontem [dia 28 de Julho] recusei diversos convites, antes do seu e-mail, nomeadamente de três televisões nacionais, para falar sobre o assunto porque… entrei de férias e as férias são, digamos, pouco científicas”.

Resposta da directora-adjunta da Lusa ao PÁGINA UM garantindo que o relatório do IST “existe, naturalmente”, caso contrário não teria sido feita notícia. Mas para o Tribunal Administrativo de Lisboa, o IST diz agora que nunca houve relatório mas apenas um “esboço embrionário, consubstanciado num mero ensaio para um eventual relatório”. Aparentemente, o “esboço embrionário” não evoluiu, ao fim de dois meses, não tendo havido gestação e o “nascimento” de um qualquer relatório científico.

Henrique Oliveira salientou também ao PÁGINA UM que todos os outros membros do grupo de trabalho do IST – Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro, além de Rogério Colaço – estavam de férias. Ou seja, a notícia da Lusa foi convenientemente divulgada na véspera de todos os cinco investigadores do IST meterem férias.

Saliente-se que as conclusões alarmistas do alegado relatório do IST – afinal um “esboço embrionário” transmitido ao público como se fosse pura Ciência saída de uma universidade pública portuguesa – não encontram respaldo nas evidências observadas durante o mês de Junho, como o PÁGINA UM revelou.

Com efeito, enquanto decorreram as festas de Santo António, São João, Rock in Rio e outros festivais ao de Junho, os casos positivos de covid-19 foram sempre descendo em Portugal, contrariando mesmo as previsões anteriores de um relatório do IST, conforme comprovara o jornal digital Blind Spot dias antes do take da Lusa.

Por exemplo, no dia 1 de Junho a média móvel de sete dias estava nos 24.602 casos positivos para todo o país, no dia 8 tinha descido para 20.575 casos, no dia 15 já estava nos 15.368 casos positivos, no dia 22 baixou para os 12.939 casos positivos e no final do mês estava mesmo abaixo dos 10 mil casos.

Um relatório anterior do IST alertava que haveria um aumento das infecções com as festividades, mas tal não sucedeu. O suposto relatório de finais de Julho pretendia convencer o público que afinal as previsões estavam quase certas. Mas, na hora de mostrar a base científica dessas conclusões, o IST está a recusar essa validação externa. As festas populares em Lisboa este ano tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos regrediram face a Maio

Durante o mês de Junho, os casos positivos de covid-19 aceleraram sempre, mas na direcção oposta à subida: ou seja, reduziram-se, o que contrariou os defensores do uso de máscaras e de restrições aos ajuntamentos como formas eficazes de controlo da pandemia. Em Julho sucedeu o mesmo. De acordo com os dados do Worldometer para Portugal, no final de Julho contabilizavam-se 3.258 casos positivos em cada dia (média móvel de sete dias). Em Agosto, os casos mantiveram-se sempre estáveis em redor dos 2.500 casos positivos. Actualmente, rondam os 2.200 casos por dia.

A acção do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa, com o apoio dos leitores através do FUNDO JURÍDICO, surgiu depois de esgotados todos os prazos e tentativas para o presidente do IST, Rogério Colaço, disponibilizar voluntariamente todos os relatórios e dados brutos sobre as análises em redor da pandemia. A verificação externa independente é, aliás, uma prática comum de validação em debates científicos, algo que o catedrático que agora lidera esta instituição pública parece querer ignorar, independentemente da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.

Mas o presidente do IST sempre recusou disponibilizar essa informação. Aliás, a única vez que Rogério Colaço se dirigiu ao PÁGINA UM foi numa lacónica mensagem enviada através do seu Galaxy: “O pedido formal ao presidente do IST está respondido e a resposta é negativa.”

Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, nunca negou a existência e paternidade do relatório divulgado pela Lusa no final de Julho. No Tribunal Administrativo de Lisboa alega agora que a instituição universitário pode promover, sob a forma de Ciência, um “esboço embrionário, consubstanciado num mero ensaio para um eventual relatório”, não permitindo sequer uma validação externa independente.

Saliente-se, por fim, que o PÁGINA UM questionou no início de Agosto os responsáveis editoriais do Público, Observador, Visão, TSF, Correio da Manhã, jornal i, Sábado e CNN Portugal para saber se, tendo todos replicado o take da Lusa, houvera antes da divulgação junto dos leitores uma confirmação da veracidade dos factos, se houvera confronto de outras fontes e se alguém das respectivas redacções tivera acesso ao famigerado relatório do IST.

Só dois responderam ao PÁGINA UM: Sábado e jornal i. E confirmaram que não tinham tido acesso ao relatório. Todos os outros nem sequer responderam ao PÁGINA UM, considerando assim o assunto irrelevante.

Em suma, cerca de uma dezena de órgãos de comunicação de âmbito nacional divulgaram uma notícia sobre um “relatório” que afinal a própria instituição científica diz ser agora ser “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” – e, por esse motivo, não o quer divulgar. Nem divulgar os supostos dados científicos que estiveram na base de uma notícia alarmista não confirmável.

O processo de intimação do PÁGINA UM continua a correr no Tribunal Administrativo de Lisboa, até porque foi solicitado ao IST mais informação do que a referente ao suposto “esboço embrionário”.

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