a deriva dos continentes

Ó kota, tu bates bem?

por Clara Pinto Correia // Setembro 29, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

Para concluir dignamente a triste história do grande romance que eu passei 23 anos a incubar e mais quatro anos a escrever, e da sua morte às mãos daqueles que fazem a opinião dos portugueses, resta-me revelar porque é que foi que nunca houve uma boa estratégia de divulgação e promoção por parte da editora, capaz de romper um mínimo da muralha de aço erguida em torno de tudo o que me dizia respeito. O resto seria um castelo de cartas. Todas as pessoas da minha geração se lembram da comoção com que assistimos, dia após dia, à destruição do Muro de Berlim, que acabou por ficar de rastos como um verdadeiro tigre de papel, incapaz de conter mais boicote algum. Depois do livro americano, este romance, que ainda por cima logo a seguir até ganhou um legítimo prémio literário, podia ter o mesmo efeito. Mas, para isso, era preciso que o editor se esforçasse…


… O problema foi que o editor estava furioso comigo.

Porque eu, pérfida, em vez de um best-seller tinha-lhe impinjido um mono que ninguém comprava.

Inicialmente, quando recebeu e leu o manuscrito, disse à minha frente, em altas vozes, e a quem o queria ouvir, que ninguém escrevia com aquela pujança desde a morte do Zé Cardoso Pires. Eu quase que morri, porque não é possível comparar ninguém com o Zé Cardoso Pires. Mas ele estava entusiasmadíssimo, e absolutamente convencido de ter nas mãos uma daquelas obras-primas que enchem as editoras de dinheiro. Eu fartei-me de o alertar para a existência da muralha de aço, mas ele só dizia que, com um romance daqueles, isso ia desvanecer-se em névoas cada vez mais ténues. Durante todo esse tempo, sempre que eu tinha que ir à editora, que ficava algures nos arredores da Parede, pagava-me gentilmente o táxi que me levava lá a partir da estação (eu não tinha um tuste, mas tinha o passe), e pagava-me o táxi de volta.

Eu bem tentei explicar que era impossível que as pessoas se interessassem pelo livro se não sabiam que ele existia.

Como não sabem!,” gritou-me logo a esposa e secretária do editor, uma brasileira gorda de metade da idade dele e com ar de tanque Panzer. “O seu romance está em todas as montras!

Não basta um livro estar nas montras para se reparar nele,” respondi eu docemente. “Estive com o Tolentino Mendonça. Ele sabia, desde antes de eu ir para a América, tanto do projecto do livro científico como do projecto do romance. Quando eu lhe disse que já tinham saído os dois, ficou a olhar para mim com um ar aterrorizado, e só conseguia repetir Ó Clara… Ó Clara…

Olha que esse Tolentino Mendonça tem que ser um grande imbecil!,” gritou outra vez o Panzer. “ Pois se o livro está em todas as montras…

Claro que a reunião ficou por aqui.

Quem é que mandou andar a brincar com estas coisas…

O problema é que o editor não me reembolsou pelo táxi da estação à editora, embora eu lhe tivesse dado a factura logo à chegada; e também não deu quaisquer sinais de estar em vias de puxar de uma notinha de cinco euros para o regresso. Telefonaram a chamar-me um táxi e já gozas. Os bons tempos tinham declaradamente chegado ao fim.

Entrei no táxi sem aflições, porque aquelas corridas costumavam ser quatro euros e meio, e isso eu ainda tinha na carteira. Ia ficar sem cigarros, mas ao menos regressava de cabeça erguida.

Só que, na estação, o taxímetro marcava cinco euros e meio.

Paga-se um euro a mais pela chamada telefónica.

Oiça,” disse eu ao taxista, um jovem todo bonito e bronzeado, com umas belíssimas tatuagens nos braços musculados. “Eu não vinha preparada para ser eu a pagar. Tenho quatro euros e meio, mas não tenho mais. Se quiser, podemos ir à polícia. Ou podemos voltar à editora. Veja lá…

Só tem quatro euros e meio?,” rosnou o miúdo.

Só. Mas, se quiser…

Passe-me mas é todo o dinheiro que tem aí.

Passei-lhe a minha bolsa, de onde ainda saíram mais umas moedinhas pretas para ajudar à festa.

Se quiser…

Não quero nada. Vá lá à sua vida e não me chateie mais.

Sabe, eu tinha…

Ele virou-se para trás, olhou-me de frente nos olhos, e encerrou assim o assunto, de uma vez por todas:

A senhora já tinha era idade para ter juízo!

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.