Não me importava de não ser médico quando vejo o António. Ele fala, de um modo pouco perceptível está consciente, responde ao estímulo verbal enquanto o corpo inerte, anquilosado de forma fetal, se enche das feridas da cama.
Não sei se é a família que exige que o salvem, não sei se é a Medicina encarniçada que sente necessidade salvífica.
António é uma desgraça enquanto vida e é a montra da inutilidade do SNS. Está vivo, sente dores e aparentemente deixou de se manifestar obnubilado naquela deformidade. Eu matava-o, porque se fosse ao contrário suplicava que me fizesse.
Eu morro um pouco de o ver chegar de um lar para onde foi depois de um hospital onde o amputaram, onde o medicaram.
A cama onde tem de ficar é o seu espaço dos horrores porque conduz às escaras. Não tenho serviços que o melhorem. Não tenho soluções de internamento, porque cada dia há menos camas.
Tenho cuidados continuados amputados de inúmeras funções para serem lugares sem terapêuticas com agulhas. Cuidados continuados na fronteira da falência de cuidados por falta de pessoal qualificado, por falta de capacidade financeira, por gestão medíocre também.
Tenho famílias limitadíssimas nos seus orçamentos e ele tem uma reforma mínima.
Há fins carregados de indignidade. Se ele sente, está há meses a passar o que nem Jesus a caminho da cruz. O ridículo e o caricato é ter na sua tabela terapêutica medicamentos para prevenir a aterosclerose, para prevenir o enfarte do miocárdio, para corrigir a diabetes. São os protocolos da insanidade mental a que chegou a medicina.
Há famílias igualmente insanas que pedem pela sua vida quando a morte está ali mesmo a chamar pelo regaço e o conforto. Ser médico não é impedir a morte! Ser médico não é cumprir protocolos e seguir orientações.
Se fosse um canídeo havia gente ferida e zangada a escrever no Facebook. Dentro de uns anos os cães e gatos passarão pelo mesmo, insanamente em quimioterapias, em cuidados salvíficos, que podiam tirar a fome a milhares de crianças, impedidos de se enroscar num lugar ermo e morrer em paz.
Aqui, António está só, imóvel numa cama sem colchão anti-escaras, sem apoios para o conforto, e sem vislumbrar o fim porque anda gente atenta a impedir a sua partida.
Não quero que me chamem médico assim. Queria capacidades de acção, circuitos de dignidade para estes morreres lentos, mas que podiam ser aconchegados, apoiados.
O SNS não responde à saúde oral, responde com grande deficiência à saúde mental, está amputado de capacidade nos paliativos, mas distribui prevenção medicamentosa e quatro doses de vacina ao António que mesmo inerte contribui para a fortuna das farmacêuticas.
A insanidade mental e a incapacidade crítica envergonham-me como clínico, também como político, também como cidadão e talvez por essa razão esteja a chegar o tempo de deixar esse mundo. O ciclo de vida de quem está inadaptado, quem não compreende a evolução. Também nós temos um limite para o sofrimento alheio.
Quando vejo o António ocorre-me: antes enforcado que tal sorte.
Diogo Cabrita é médico
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