Nuno Ramos de Almeida foi convidado para dirigir um jornal com o objectivo de divulgar projectos financiados por um programa governamental, estando a ser pago pela Presidência do Conselho de Ministros, por via de uma contratação por ajuste directo. O jornalista não suspendeu a carteira profissional e não vê qualquer incompatibilidade. Abre-se uma caixa de Pandora.
São dezenas os profissionais de imprensa que, invariavelmente, em cada mandato governamental, saltitam das redacções para as assessorias governamentais ou de entidades públicas. E, em muitos casos, depois regressam ao posto original, ou seguem para outras paragens.
Para aqueles que têm mais de 10 anos de jornalismo, a lei até permite que mantenham o seu estatuto, mesmo que não seja a profissão principal, mas há incompatibilidades que não são aceites, como seja as assessorias políticas e comerciais – enfim, as que ponham em causa a sua independência. E não apenas para o proteger de desconfianças, mas para proteger toda a classe.
Por isso, invariavelmente, todos os jornalistas quando entram em funções nessas circunstâncias entregam o seu título (carteira) na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) enquanto desenvolvem as actividades incompatíveis. Suspendem, enfim, a sua actividade. E nunca se apresentam como jornalistas nem as entidades os contratam ou os apresentam como tal.
Nunca, excepto agora, com uma inédita contratação do jornalista Nuno Ramos de Almeida.
Jornalista com vasta experiência, tendo sido editor-executivo no jornal i e no semanário Sol entre 2011 e 2018, Ramos de Almeida foi agora contratado em finais de Setembro por ajuste directo para “prestar serviços de jornalista no âmbito do Programa Bairros Sociais”, através da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros.
O valor do contrato é de 9.000 euros por um prazo de três meses, tendo como função a direcção do Jornal dos Bairros Saudáveis, a partir de um programa de iniciativa governamental presidida pela arquitecta Helena Roseta. Como o site, que não deverá ter registo na Entidade Reguladora para a Comunicação Social, por não ter carácter noticioso, tem ainda poucos conteúdos, será previsível que o contrato de Ramos de Almeida venha a ser prorrogado. A opção por um contrato trimestral com um valor médio mensal de 3.000 euros aparenta ter sido uma forma de isentar a redução a escrito do contrato, uma exigência a partir dos 10.000 euros.
Em todo o caso, a contratação de Nuno Ramos de Almeida era já um desejo do gabinete de Helena Roseta, depois deste jornalista ter regressado do Luxemburgo no início de 2021 após uma longa experiência como editor-chefe no jornal Contacto.
Nuno Ramos de Almeida surge agora como correspondente daquele periódico luxemburguês de língua portuguesa, que ganhou em 2020 o prémio de melhor jornal local da Europa atribuído pelo European Newspaper Award. Além disso, colabora com o site informativo da associação AbrilAbril.
O Programa Bairros Saudáveis é uma aposta pessoal de António Costa, envolvendo seis ministérios, para financiar projetos locais de iniciativa participativa, de modo a melhorar as condições sanitárias, inclusive das comunidades afetadas pela pandemia. Conta com uma dotação de 10 milhões de euros. Não existe qualquer dúvida sobre o carácter governamental do programa e do jornal: os sites respectivos têm o domínio gov.pt.
O Jornal dos Bairros Saudáveis esteve pensado desde o início, mas por razões desconhecidas a contratação de Nuno Ramos de Almeida foi sendo adiada, até se concretizar em finais de Setembro passado.
A participação de Nuno Ramos de Almeida neste programa já se iniciou no ano passado, mas como media trainer. Em Maio de 2021 recebeu 7.500 euros pela “prestação de serviços de formação jornalística e edição jornalística”, através de um contrato também não escrito, por ajuste directo. Neste caso, a entidade adjudicante foi a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde.
Contactado pelo PÁGINA UM, Nuno Ramos de Almeida, que ostenta a carteira profissional número 1551, ainda hoje activa na base de dados da CCPJ, diz que as suas “funções não são de assessoria de imprensa do Estado ou do Governo”. Afirmando ter ajudado “a imaginar um site” para divulgação dos projectos dos Bairros Saudáveis, bem como a dar “formação e sensibilização sobre formas de escrita jornalística”, Ramos de Almeida salienta que “neste momento, recebo e edito, com critérios jornalísticos possíveis” os textos enviados pelos beneficiários, sendo esse trabalho feito à distância.
Considerando que não se encontra em incompatibilidade por integrar um projecto governamental – e sabendo-se que o jornal pretende divulgar de forma somente meritória as iniciativas financiadas pelo Estado –, Ramos de Almeida defende ainda que “aquilo que faço, a convite das pessoas que coordenam os Bairros Saudáveis e dirigem o jornal, não é nenhuma forma de assessoria, mas uma tentativa de ajudar projectos sociais de valor e com a participação das suas populações a noticiarem o que fazem de uma forma jornalística.”
Instado a comentar se essas funções de comunicação – um dos pilares do marketing, cujas acções são proibidas aos jornalistas – não o deveriam levar a suspender a carteira profissional de jornalista enquanto estivesse nessas funções, Ramos de Almeida reitera que, na sua opinião não vislumbra qualquer incompatibilidade. “Não estou a fazer nem publicidade, nem assessoria de comunicação, nem sou titular de nenhum órgão de soberania”, diz, enfatizando que, na sua opinião, não trabalha para a Presidência do Conselho de Ministros – entidade que o contratou – nem para o Governo nem para nenhum ministério. Contudo, assegura agora que vai pedir à CCPJ “um parecer a esse respeito”.