a deriva dos continentes

Casos gritantes, exasperantes, e muitíssimo inquietantes da péssima comunicação social: 2ª parte

por Clara Pinto Correia // Outubro 14, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

Continuando, de coração apertado, a catastrófica falta de informação sobre a morte do Archie a tentar suster a respiração mais tempo que todos os outros adolescentes em jogo.

Se ninguém fizer nada em relação aos jogos assassinos do TikTok, já estou a imaginar a próxima catástrofe irresistivelmente apelativa, destinada diretamente e sem vergonha às criancinhas propriamente ditas, que acham sempre muita graça a estas grandes surpresas da História Natural: PUTOS DO MUNDO INTEIRO! Embora fazer um concurso para ver quem é que consegue ultrapassar o recorde do urso polar, que chega a aguentar-se três minutos sem respirar debaixo da água gelada[1], quando fecha as narinas e mergulha atrás das focas!


… É muito fácil espicaçar as criancinhas para quererem mesmo ganhar um desafio desta envergadura.

Hey, ganhar aos outros rapazes é uma vitória – mas ganhar aos ursos polares, os maiores e mais fortes ursos do mundo, isso não é só uma vitória, meu, isso é mesmo uma puta glória!

E então, enquanto os pais se maravilhavam com esta espantosa nova informação – “três minutos? De narinas fechadas? Honey, estou parvo. Já viste bem o que é o poder da evolução?” – era ver as criancinhas a correrem para a praia mais próxima, tirarem a roupa, e mergulharem na água gelada até ao mais longe possível da costa[2]… e morrerem, claro. Não só por falta terminal de Oxigénio, mas também por hipotermia. E atenção, que para mergulhos em mares gelados não é propriamente preciso ir ao Ártico, onde se pode partilhar com o urso polar o seu habitat natural: a água das praias é gelada em praticamente todo o Norte da Europa, sobretudo para mergulhos de quatro minutos.

Imagina-se facilmente o cenário seguinte, e o que a nossa Comunicação Social nos diria.

Lá teriam os presidentes de todos os países da Alemanha para cima de decretar três dias de bandeiras nacionais a meia haste. Lá ouviríamos nós sempre as mesmas partes dos mesmos discursos. Lá ficariam os espectadores de Agosto, todos repimpados nas suas espreguiçadeiras, a emborcar uns destilados de fim de dia enquanto se gozavam sempre das mesmas imagens de meia dúzia de progenitores chorosos, falantes de diversas línguas, e de dezenas de corpinhos muito branquinhos dados à praia. E, uma vez mais, nunca haveria mais nada para dizer. Os espectadores em férias seriam a banda sonora.

C’um caraças, Tó! Olha aqueles, olha aqueles, já viste aqueles putos pequeninos ali na rocha, todos completamente mortos?” – “Ai pai, não gosto nada quando tu dizes os putos” – “Filhota, caladinha se fachavor, o pai agora está a falar com o tio sobre os putos todos mortos[3].

Clarinha e as outras dores. Algures durante os trinta anos em que foi normal ter uma casinha alugada no Penedo para férias e fins-de-semana da família, Clarinha mostra-nos exemplarmente que ela, ao menos, nunca deixou de ter presentes as dores dos outros e as suas causas

Estas imagens sem debate eram ainda mais parecidas com uma série de aventuras mórbidas porque, ao longe, se viam outros corpinhos que ainda estavam a ser recolhidos por barcos e mergulhadores, antes que chegassem os tubarões, para que as famílias pudessem dar-lhes uma “despedida condigna”. E lá ouviríamos de meia em meia hora, em imagens da Finlândia aparentemente capturadas por um qualquer Smartfone deveras amador, os pais da pequena Aicha, com um ar destroçado, repetir o dia inteiro “ela sempre foi muito competitiva, e na nossa família sempre tivemos a tradição de mergulhar dentro do gelo…

Mas alguém discutiu a legitimidade do TikTok para propor concursos virais de morte certa às criancinhas?

Desculpem, era só uma pergunta retórica.

Feita apenas porque DEVIA ter sido feita – e, no entanto, NINGUÉM a fez.

Raios me partam, que isto era material com tantas pontas por onde se lhe pegasse. O que a nossa Comunicação Social desperdiça. E, em consequência, o que todos os Portugueses perdem.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Isto já é manipular grosseiramente os dados, porque estamos a falar do mergulho mais longo observado até à data: 3 minutos e 10 segundos. Mas, por regra, o mergulho do urso polar fica-se entre um ou dois minutos, não mais.

[2] Com um bocado de sorte, ainda apanhavam também uma foca…

[3] A esta hora o pai já lhe tinha chegado bem nos destilados. E, como a maior parte da população deste século, tinha uma dificuldade crescente em distinguir entre realidades e filmes quando estava a ver televisão.

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