Na longa produção de Verne, a “África negra”, ao sul do Sara, é, muitas vezes, o palco da acção. Embora existindo como referente minuciosamente descrito – as partes que são importantes para a construção da diegese, entenda-se – tal continente não era conhecido de Verne, a não ser através dos manuais, compêndios, tratados de geografia e ciências naturais e relatos de viajantes que eram acessíveis aos estudiosos da época.
É curioso verificar que, desse continente desconhecido para Verne, e mesmo mal conhecido pelos seus contemporâneos que apenas o abordavam parcialmente, surjam imagens de imensa justeza. Tal justeza, no entanto, deve ser entendida em três dimensões pelos menos: uma acurada descrição da dimensão física e geográfica, uma imensa preocupação pela compreensão – eivada de curiosidade e apelo do exótico – da dimensão etnográfica (e mesmo antropológica) e um esforço de equacionar esses conhecimentos na dimensão do ideológico.
O que emerge desse esforço é um “primeiro olhar colonial pleno”, em que os “indígenas” surgem como entes entre o fabuloso e o digno de piedade – e o estatuto das personagens portuguesas aparece francamente oscilando entre o “nós e o outro”. Sem defender inteiramente as teses de Martine Astier Loutfi, parece-nos justa, não obstante, a sua observação de que “devemos colocar numa posição especial […] Jules Verne, cuja obra, embora sem tratar especialmente a expansão colonial, contribuiu bastante para lhe fornecer o acervo imagético” (1971: 51.
A questão do descritivo em Verne, tal como se nos apresenta nos romances, pode ser tratada tendo em vista os processos verbais da representação do espaço, colocando no horizonte a questão ideológica. Escapar a tal abordagem, em dupla dimensão, seria, parece-nos, deixar de interrogar alguns aspectos do sentido pleno que é, na obra verniana, a relação do sujeito com o objecto, do nós com os outros, do eu com o mundo.
Talvez tal interrogação não fosse tão importante em relação a outros escritores, mesmo do seu tempo, que apresentaram uma dominante do descritivo não menos decisiva do que a que encontramos em Verne. A razão da diferença reside, como pensamos ser evidente no decorrer da nossa argumentação, no facto de o mundo revelado pela descrição nos romances vernianos ser essencialmente o da alteridade plena, o da relação de um sujeito nós totalmente caucionado pelos valores da comunidade (a ética, a ciência), com objectos do conhecimento – não só lugares, faunas e floras exóticas, como outros homens, sob cuja aparência humana se escondem, em princípio, a desumanidade, a selvajaria, a anarquia adversa aos valores indiscutíveis do nós.
Cremos estar, quanto a esta matéria, perante a nítida representação sistemática (imagens, mitos, ideias e noções articuladas segundo uma lógica própria) da rede de “relação imaginária dos indivíduos com a suas condições reais de existência”. Contudo, se esta formulação segundo Althusser (1977: 107) pode servir de ponto de partida para uma definição de ideologia propomo-nos encarar, como perspectiva relativizante de um conceito tão avassalador, a vertente ideológica do signo como uma das suas possibilidades.
De facto, partindo do princípio que nos oferece a proposta de Bakhtine, a correspondência mútua de signo e ideologia pode ser entendida não só como “tudo o que é ideológico é semiótico”, mas também como, inversamente, “tudo o que é semiótico é ideológico” (1977:27). Assim, quando formula o conceito de ideologema, apresentado como “conceito nebuloso” (1977:57), o semioticista russo parece enunciar, como já o referiu Marc Angenot (1984:120), uma configuração muito similar aos topoi retóricos – “conteúdos determinados e definidos pelo conjunto das máximas em que o sistema lhes permite figurarem”, sendo “o seu estatuto opinável identificável com a confirmação de uma representação social que eles permitem operar.(…) Estes ideologemas funcionam à maneira dos lugares (topoi) aristotélicos como princípios reguladores subjacentes aos discursos sociais a que conferem autoridade e coerência”.
Ora, se o grau de generalidade dos “lugares” pode ser muito vasto, atingindo uma dimensão em que a historicidade quase se perde, a abordagem que aqui pretendemos fazer da ideologia em Verne buscará encarar na sua máxima historicidade as formulações tópicas. Assim, a ética, a ciência, a razão, valores de que os heróis vernianos são portadores, serão por nós evocados tendo em conta que, se para o sistema ideológico em que se inscrevem, tais valores eram como que eternos e imutáveis, para um observador desinserido desse sistema (mas não de outros equivalentes – não temos essa ilusão), para um leitor colocado no lugar em que nos propomos nós próprios estar, tais valores são relativos a um sistema enformado pela lógica ocidental, judaico-cristã, imperialista e expansionista.
Tal formulação, que hoje faz parte das nossas evidências esclarecidas, tem, obviamente, a sua história no interior da História das mentalidades. Para um estudioso como Todorov, por exemplo, a visão da época de Verne pode ser vista como uma antecipação dos processos de globalização que hoje são agenda inadiável das políticas das grandes potências. Assim, o estudioso búlgaro desenvolve, sobre a ideologia cientista oitocentista do estado universal, uma análise que se poderia resumir, nas suas próprias palavras, ao seguinte: “A prazo, a humanidade constituirá assim, une sociedade única. É essa a tarefa do positivismo, única doutrine verdadeiramente universal, que ajudará os homens a avançar nessa direcção” (1989:45).
Parece-nos possível, portanto, colocamo-nos na perspectiva crítica de quem observa os observadores vernianos na sua limitação eurocentrista, positivista, expansionista, típica do sistema ideológico que domina a acção científica em busca do conhecimento de territórios a civilizar, a democratizar, a ocupar. Para tal, procuraremos compreender quais os mecanismos de representação fundamentais, e as grandes linhas que permitem orientar a visão narrativamente construída, de modo a gerar um modelo em que, também pela ficção e pela mimese, o homem ocidental capta o universo que pretende dominar.
O primeiro grande mecanismo ou dispositivo de representação que se nos patenteia, aquele que, por assim dizer, pela sua envergadura, parece subsumir os outros de que falaremos posteriormente, é a perspectiva panorâmica, devedora às técnicas pictóricas do naturalismo paisagístico oitocentista.
Basicamente, uma técnica pictórica de perspectiva, estabelece, conceptualmente, três elementos teóricos de construção: um ponto onde assenta a visão (e se ela é mono ou multiocular); um espaço de passagem para essa visão (uma objectiva, um buraco, uma janela – um enquadramento visível ou invisível no objecto representado); e o objecto representado. Ora, as perspectivas panorâmicas que se desenvolveram no século dezanove, tendentes a envolver o observador no espaço representado, usavam, sobretudo quando se tratava de apresentar espaços distantes e desconhecidos dos europeus, um dispositivo relacional de perspectiva a que os críticos de arte ingleses chamam “bird´s–eye views” – que talvez pudéssemos traduzir por “panorama do olhar do pássaro”, ou, simplesmente, “visão panorâmica”[1].
O modelo mais perfeito que conhecemos de tal perspectiva é a reprodução de dois quadros de Nestor L´Hôte, ambos chamados Panorama d´Egypte et de Nubie, mostrando cerca de mil quilómetro de curso de água e terras adjacentes – um, de 1841, sugerindo a visão do vale até ao Cairo a partir do troço entre a primeira e a segunda catarata; o outro, datado de 1878, sugerindo a visão em sentido contrário do mesmo “espaço geográfico real” (in Gadalupi, 1997: 8-9). Já se vê que tal visão a partir da posição do “olhar do pássaro” é uma ficção de perspectiva, fantasiando um lugar de perspectiva – não ocupado, de facto – para dar as imagens realistas de um espaço segundo um modelo intermediário entre as regras da figuração pós-renascentista (ainda que o a “moldura” de enquadramento seja o infinito) monocular, e as do desenho de projecção tendo como limites a respeitar as escalas cartográficas.
Compreende-se que uma tal visão do mundo participa de duas esquematizações: a fantasia ideal de um lugar dificilmente ocupável no século XIX, e do seu visionarismo; e de uma especulação técnico-científica que, através de grelhas geodésicas, capta um mundo em que quase tudo o que está no seu interior, e lhe diz respeito, se perde.
Este dispositivo de olhar encontra-se exemplarmente construído na obra liminar de Verne, cuja acção se situa em África: Cinq semaines en ballon (o início da série da Viagens Extraordinárias, que começa a sair na editora Hetzel, inicia-se com a publicação desta obra em folhetim, em 1862, e em livro, em 1863). É o próprio herói que descreve o mecanismo miraculoso do olhar
“…Mon ballon ne me manquera pas(…)Avec lui tout est possible; sans lui, je retombe dans les dangers et les obstacles naturels d’une pareille expédition; avec lui, ni la chaleur, ni les torrents, ni les tempêtes, ni le simoun, ni les climats insalubres, ni les animaux sauvages, ni les hommes ne sont à craindre! Si j’ai trop chaud , je monte; si j’ai froid je descends; une montagne, je la dépasse; un précipice, je le franchis; un fleuve, je le traverse; un orage, je le domine; un torrent, je le rase comme un oiseau! Je marche sans fatigue, je m’arrête sens avoir besoin de repos! Je plane sur les cités nouvelles! Je vole avec la rapidité de l’ouragan, tantôt au plus haut des airs, tantôt à cent pieds du sol, et la carte africaine se déroule sous mes yeux dans le grand atlas du monde!” (1977: 21).
O mapa africano desenrola-se, como um espectáculo, como um produto do mecanismo de representação pensado em função da ciência e refinado em função da maravilha. Não seria possível dizer melhor, por outras palavras, o projecto linearizante da viagem. Demarcar-se, esquivar-se, manter-se à distância para obter a recta, essa utopia verniana que Chesneaux considera tão relevante:
“Os caminhos de ferro ocupam um lugar privilegiado nessa longa meditação sobre a linha recta que são as Voyages extraordinaires; melhor do que qualquer outro meio de locomoção, simbolizam a aptidão da humanidade para percorrer o globo sem se desviar do seu objectivo, a envolvê-lo, a traçar nele a sua marca” (1982:68).
Esquema simbólico fundamental, a linha, quer apareça sob a imagem do comboio, quer se defina pelo traçado de qualquer outro meio de locomoção, é por excelência a formulação de uma apropriação, de uma captura, de um princípio da ordem a partir do centro. Notemos apenas, como hipótese sedutora, que, de acordo com tal análise, toda a exigência teórica do cinema, para a construção da perspectiva com mobilidade da objectiva, está já pressentida em Verne, muito embora as possibilidades técnicas do novo meio ainda estejam em embrião na sua época. Não podemos esquecer, neste ponto, a observação que Jacques Leenhardt faz, a propósito de La Jalousie de Robbe-Grillet: “Medir, agarrar, descrever, tais são os instrumentos do domínio da Terra – geometria -, instrumentos privilegiados do acto de olhar, no qual é necessário ver a origem de toda a narração, de todo o texto” (1973:48).
Para lá de uma base mínima de definição de ideologia, enunciada essencialmente na sua dimensão política (visão das práticas do poder caucionadora dos seus processos de actuação), propomo-nos aceitar como válida, para uma melhor compreensão de como a ideologia funciona no texto, na superfície textual de que a descriçäo é um dos modelos privilegiados, a hipótese teórica de Hamon (1984:20) segundo a qual, mais do que dizer o que é ideologia importa sobretudo encarar no texto o efeito-ideologia.
Segundo o mesmo autor, tal efeito é indissociável da construção e encenação de “aparelhos normativos” textuais incorporados no enunciado. Os modos de construção desses mesmos “aparelhos”, a sua frequência de aparição e intensidade variam de enunciado para enunciado, de acordo com condicionantes sócio-linguísticas variáveis, mas são identificáveis quase inequivocamente, como o tem mostrado a observação científica empírica, nomeadamente de Labov (cf. Hamon, 1984: 20). Quer seja o narrador digno de crédito (a voz sem contrapartida – sem “paródia” – negativa) quer seja uma personagem em quem ele delega os valores fundamentais que regulam a credibilidade, o processo é de uma modalização avaliativa que emerge em determinados pontos do enunciado.
Na perspectiva de Hamon que vimos seguindo, tais aparelhos avaliativos podem aparecer e ser detectados em “pontos textuais” particulares, privilegiados, sendo possível fazer deles um quadro teórico geral independentemente dos corpus manipulados (cf. Hamon, 1984:20). Do ponto de vista da abordagem ideológica da literatura, tais locais do texto podem considerar-se pontos nevrálgicos, pontos deônticos, pontos encruzilhadas ou focos normativos.
Na sua tipologia das relações com o outro Todorov (1988:227) considera que existem pelos menos três eixos sobre os quais se podem colocar os problemas da alteridade: o do juízo de valor no qual funcionam os pontos modalizantes a que já fizemos referência, relativos ao dizer, o fazer, a estética e a ética – é, enfim, o eixo da axiologia; o eixo praxiológico, segundo o qual me aproximo ou afasto do outro, me identifico ou não com ele, o submeto ou sou submetido; e um terceiro eixo que se pode designar por epistémico, segundo o qual conheço ou ignoro a identidade do outro. Partindo dos aspectos gerais de uma tal tipologia, podemos dizer que toda a descriçäo que precede a viagem, de um modo sistemático em Cinq semaines mas de modo também evidente nos restantes romances é, em Verne, a utilização avaliativa do saber-dizer e fazer (logos) e do fazer na acção de relação (praxis).
Colocada aquém da viagem, da prova fundamental que é a alteração de uma relação com o saber, sendo esta a experiência aventurosa segundo os passos dos pioneiros, de modo a confirmá-los ou a contestá-los, a série do saber-dizer e do saber-fazer desaparece ou diminui de importância como qualificação (a menos que seja um acréscimo redundante às competências dos heróis) entrando em funcionamento a série do epistémico, sobretudo se tem de se processar relativamente a novos elementos descobertos pelos viajantes, a partir do momento em que os heróis iniciam o percurso. O fazer deixa de ser aplicação para se tornar aprendizagem e conhecimento novo, no processo de formação.
O modelo geográfico serve de base científica à congeminação teórica e poética que norteia a representação e demonstração da realidade etnográfica, política e ideológica, cuja observação é empírica e experimentalmente menos evidente do que a outra. Vai de arrastão, segundo o modelo geográfico. Assim, quando, nos primeiros parágrafos de Le village aérien, um dos protagonistas se pronuncia sobre a região africana em que se encontram, não hesita em determinar as fronteiras e limites desse mesmo espaço tendo como referência as fronteiras coloniais já existentes.
O tema da conversa, entre dois amigos, o francês Max Huber e o americano John Cort, no primeiro capítulo do romance referido, é a “aquisição” para a “civilização” do espaço que, nesse momento, se encontram a percorrer. Como nos apercebemos rapidamente, desde os primeiros parágrafos do texto, tal território encontra-se cartografado, designado geodesicamente, mas não está integrado na civilização.
Visando esse fim, Max avança com uma pergunta, que é todo um programa de cosmização: “Et le Congo américain?”. Com essa frase liminar, o herói de Verne gera um horizonte de utopia, como explica um pouco adiante: “Je le repète, en cette partie de l´Afrique, l´Union pourrait se tailler une colonie superbe.” Esclareça-se que os dois viajantes atravessam uma região pejada de perigos, no interior de uma carroça conduzida por um português “residente” na zona costeira do território, e ao lado deles vai um guia nativo. No exterior vão os carregadores do material necessário à expedição de caça.
A floresta exuberante e a fauna abundante são descritas com primores de compêndios de ciências naturais. Os habitantes humanos são apresentados segundo os traços físicos e exteriores, com pitorescos traços de intenção etnográfica, mas todos os que não estão junto aos viajantes europeus são designados como canibais.
Essa visão da etnografia de Verne é, quanto a este último ponto, persistente. Ainda nos primeiros momentos da viagem em Cinq semaines o cientista Fergusson, lúcido e triunfante, reportando-se sempre à mais rigorosa observação científica, faz a seguinte descrição ao seu criado, Joe, quando este o interroga sobre os habitantes das terras sobre as quais voam:
“- Ces tribus éparses sont comprises sous la dénomination générale de Nyam-Nyam, et ce nom n’est autre chose qu’une onomatopée; il reproduit le bruit de la mastication.
– Parfait, dit Joe; nyam! nyam!
– Mon brave Joe, si tu étais la cause immédiate de cette onomatopée, tu ne trouverais pas cella parfait.
– Que voulez-vous dire
– Que ces peuplades sont considérés comme anthropophages.
– Cela est-il certain?
– Trés certain
(…)
– Ce qui est malheureusement avéré, c’est la férocité de ces peuples, très avides de chaire humaine qu’ils cherchent avec passion” (1863:160).
Devemos, perante tal classificação do Outro, antes de tirar conclusões apressadas sobre um colonialismo feroz, de intensa coloração racista, em Verne, tomar algumas precauções, para que uma leitura ideológica no se torna uma precipitada caricatura, talvez ideologicamente menos crítica do que o discurso sobre a alteridade produzido no romanesco verniano.
Antes de mais, comecemos por reconhecer que, como primeiro discurso “científico” sobre os povos africanos, a tirada de Fergusson é, no mínimo, altamente discriminatória. Tal posição, diga-se desde já, não só é reiterada ao longo deste romance como nos outros da série e, nomeadamente, em Le village, onde um pequeno indígena é salvo dos antropófagos pelos dois heróis.
Contudo, seria estreiteza nossa apresentar uma a alteridade ameaçadora em Verne de forma täo simplista, mesmo aceitando que subjaza a toda a obra, particularmente ao corpus que temos em vista, um racismo latente, enformado por uma mentalidade civilizadora expansionista. Por exemplo, podemos dizer que, de forma menos problemática para o nosso olhar actual, a outra grande imagem do Outro como negativo é a do esclavagista. Esta última imagem, que é a temática fundamental de Un capitaine não se apresenta, contudo, com a mesma complexidade com que se apresenta a antropofagia. Este tema, que emerge de forma fantasmática e difusa em toda a obra de Verne, merece ser observado como um dos semas dominantes na isotopia da agressividade que se nos afigura presente, de modo muito dinâmico, na descrição verniana. Para lhe reconhecermos melhor os contornos comecemos por considerar o comentário de Joe à descrição acima apresentada dos “nyam-nyam”
– Si jamais je dois être mangé dans un moment de disette, je veux que ce soit à votre profit et à celui de mon maître! Mais nourrir ces moricauds, fi donc! j’en mourrais de honte”.
Comentário que, devemos dizer, encaminha o diálogo educativo para uma bem curiosa ironia como se pode ver pelo que se segue:
“- Eh bien! mon brave Joe, fit Kennedy, voilà qui est entendu, nous comptons sur toi à l’ocasion.
– A votre service, messieurs.
– Joe parle de la sorte, répliqua le docteur, pour que nous prenions soin de lui, en l’engraissant bien.
– Peut-être! répondit Joe; l’homme est un animal si égoïste! (1863:160-1)
Cremos que, sob a aparência de um diálogo humorístico, a propósito de um comportamento condenável atribuível aos outros, ao Outro ameaçador com quem Fergusson nem sequer pretende entrar em contacto, mantendo sempre o seu balão no ar, se manifesta uma formulação ideológica básica, uma espécie de revelação de mentalidade radical, visão primeira do mundo, segundo a qual o homem é o lobo do homem.
Contudo, note-se, tal axioma não aparece formulado explicitamente, permanece na zona magmática, larvar, do que poderíamos chamar, segundo Vovelle (1982:13-14), “mentalidade”. Com efeito se aceitarmos, a sua concepção de que a mentalidade se situa a um nível mais profundo do que a ideologia, integrando o que não é formulado, que fica aparentemente insignificante, como que colocado ao nível das representações inconscientes, podendo mesmo aproximar tal concepção da de inconsciente colectivo ou de imaginário colectivo (entrando, neste segundo caso, a distinção lacaniana entre imaginário e simbólico)podemos compreender que estes “nyam-nyam” de Verne são muito mais o “papão”, o fantasma da ameaça sob os traços do Ogre, do que visões racistas discursivamente formuladas.
Embora reconheçamos o risco que tais leituras acarretam, pela multiplicidade de interpretações que possibilitam e pelo descontrolo sugestivo que o imaginário desencadeado provoca no hermeneuta, não podemos deixar de, neste caso específico, chamar a atenção para o que em Verne se desenrola no plano descritivo, apelando para uma alternância entre o fantasmático e o ideológico: no caso presente, fornecendo aquele o imaginário com que a ideologia tece a sua história, ou o seu romance legitimador.
Abusivamente, numa redução que, neste momento, cremos ser-nos consentida, se a usarmos com moderação e cautela, poderíamos dizer que é pelo facto de os negros serem canibais que a acção civilizadora é necessária, devendo eles ser “devorados” pelas potências civilizadas. Note-se que, em contrapartida, o esclavagismo nunca é entendido por Verne como um facto mercantil do Ocidente, tendo sido praticado como pecadilho, quase sempre momentâneo, por algumas nações europeias apenas, segundo a versão que dele nos dá.
A prática desse pecadilho é, no entanto, tenebrosa, quando se trata dos portugueses. Sobretudo em Un capitaine de quinze ans (1887 – ed. cons.: 1990) para lá de um longo libelo autoral contra o tráfico de escravos, a imagem central que surge do negociante de mão-de-obra humana é a do português e, nesse caso, numa prática de iconografia de persuasão pelo terror, os traços que nos são apresentados retratam um medonho mestiço de português e cafre. No imaginário de Verne estamos, com tal representação, nos umbrais do “inferno sobre a Terra”.
Uma visão do romancista francês que o tenha como colonialista militante poderá ser encarada, eventualmente, como uma operação interpretativa excessiva. No entanto, não o é para quem tenha experiência da leitura de Verne, sobretudo dos seus romances que narram os feitos de exploradores-caçadores por terras selvagens, e o enquadre, como já o temos vindo a fazer, em todo um universo cultural e de mentalidade. Dentro dessa óptica, podemos registar, como profundamente significativo, que, por exemplo, os poucos contactos que a equipagem do balão Victoria tem com terra sejam de predação e massacre.
Os animais do espaço africano são abatidos para serem comidos e apreciados segundo as suas qualidades gastronómicas. Os leões são abatidos porque são um obstáculo junto do poço em que os viajantes querem beber. Tudo e todos os que se opõem ao progresso da viagem são abatidos ou destruídos sem dúvidas ou remorsos.
Assim, o discurso descritivo em raros momentos aparece sem indícios de ameaça, de violência latente, como um dos atributos caracterizadores: os leões e as suas garras, os antílopes e as suas hastes, os elefantes e as suas presas, as aves e os seus bicos. Para já não falar dos habitantes humanos que são, quando não objecto de equívoco do saber dos viajantes (por serem traiçoeiros, hipócritas, ou até por se “confundiram com macacos”, ao olhar dos europeus, como acontece em Cinq semaines), ameaçadores inimigos, na sua maioria antropófagos.
Todas as vezes que a personagem viajante é confrontada pelos seus sentidos com novos fenómenos, novos objectos (ou novas personagens, que surgem, por isso mesmo, como colecções de objectos, do outro lado da mira), a sua percepção do mundo passa a funcionar nas grelhas estéticas (do saber apreciar, saber gozar – tal indígena é feio, certo animal é repugnante, a carne de uma ave é agradável) ou, muito especialmente, nas éticas (o outro modo, a outra forma de vida, não obedecem ao código do nós, da colectividade que se movimenta e traça uma linha de diferença). Poderíamos mesmo dizer que o traço do percurso para além dos efeitos de apropriação que adiante abordaremos, institui um espaço demarcado, de fronteiras mais ou menos fluidas mas omnipresentes, em relação às quais o Outro (humano ou humanóide) emerge para ser avaliado – por norma negativamente.
Em nosso entender, a primeira grande configuração ideológica presente em Verne, na imagem que nele surge do Outro, assenta no eixo da praxis, decorrente do seu saber fazer. Para o herói verniano o Outro é sempre aquele em relação ao qual se tem de demarcar, que é preciso manter sob mira. Contendo-o à distância, defrontando-o, dá-se-lhe apenas a alternativa de se submeter ou de aceitar o “nosso natural” ascendente – ou a nossa protecção, tomando-o como servo ou guia. Caso contrário, a selvajaria absorve-nos. É a partir desta praxis elementar da distância, demarcativa de territórios, e espaços de aproximação, fundada no estabelecimento de fronteiras claras, motivada por um impulso para o saber que pretende apenas boa ordem, que os outros eixos funcionam: o do discurso e do olhar avaliativo e o da incorporação da alteridade, assimilada como saber (ingerida), na enciclopédia.
Para regressarmos ao modelo teórico de Todorov, o processo epistémico não se realiza, sem a incorporação (captação, devoração, no modelo ideológico de Verne e do positivismo) do Outro. O primeiro romance de Verne tem uma perfeita alegoria da mentalidade básica que subjaz a tal visão do mundo e do processo de conhecimento, que resumimos no parágrafo seguinte.
Em certo momento da viagem do balão Victoria, Joe, para salvar os seus amos, salta do balão e cai no lago de Chade. O que lhe acontece até reencontrar os seus companheiros de viagem é narrado no capítulo XXXV que tem como primeiro título “L’histoire de Joe”, sendo os restantes títulos, na sua maioria, nomenclaturas de lugares visitados (e descritos, obviamente). Logo dentro do lago, enquanto nada, o estado de terror de Joe formula-se num constante pesadelo de mastigações, de triturações, uma vez que, sabendo que o lago era infestado de crocodilos, receava que a sua carne estimulasse o apetite dos animais.
Sendo salvo das águas por um grupo de indígenas, a sua primeira ideia é a de que estes o vão devorar. Ao contrário das previsões, os salvadores alimentam-no bem e veneram-no – mas tal atitude não repousa o espírito de Joe que admite, em seguida, que possivelmente (p.291) naquelas terras a adoração poderia ir até à devoração do adorado. Depois de escapar da aldeia, sentindo-se cansado, adormece num tronco de árvore – quando acorda vê-se rodeado de serpentes e camaleões (p.292).
Após um segundo repouso durante o qual os insectos lhe devoraram as poucas roupas que ainda tinha sobre o corpo, Joe é acordado pelos ruídos aterrorizadores de centenas de animais de dezenas de espécies diferentes, sendo os próprios herbívoros percebidos pelos seus sinais mais ameaçadores (p.194). Contudo, a fome, única solicitação que o faz sair do estado de terror, leva-o a atirar-se sobre um sapo que, apesar de tudo, lhe causava a mais viva repugnância. Um pouco adiante, passando por um pântano, começa a ser sugado pela própria terra (p.196).
As peripécias seguintes são uma corrida, a pé, seguida de uma cavalgada, em que Joe já nem repara em nada, actua como simples fugitivo perseguido, no final, por um bando de árabes, cuja motivações agressivas nunca são explicitadas, acabando por ser salvo dessa perseguição por uma escada que os companheiros lhe lançam do Victoria.
Com modelo da viagem por terra, a única que, durante o percurso do balão é realizada neste romance, parece-nos que fica bem patente o traço dominante da ameaça da devoração. Em terra, ao homem resta-lhe ser comido ou então esforçar-se por comer. A descrição que Joe faz dos lugares por onde passa, quando conta as suas aventuras, é um assinalar assustado e hiperbólico do único traço obcecante que percebe nas coisas: serem devoradoras ou serem para devorar. Esse cuidado demarcador, primeira atitude defensiva que permite tomar todas as iniciativas, está claramente expressa no projecto de Fergusson (Verne,1863:21-2):
O triunfo da linearização, do conhecimento do território, da sua geometrização e domagem só pode ser realizado por atentos observadores, capazes de fazerem desenrolar o saber à medida do mundo e, reciprocamente, incorporar esse saber, enquanto rota, enquanto proposta pragmática de percurso, no saber da civilização. É a Terra (e os astros) que fornece os dados empíricos para a conceptualização das medidas mas, em contrapartida, as medidas permitem calcular a Terra, reticulá-la, incorporá-la no saber como objecto “civilizado” como espaço onde o homem sabe exactamente onde se encontra.
Devemos reconhecer que o discurso descritivo de Verne é, até ao seu último romance, eufórico, triunfalista e segrega e uma ideologia da violência ao postular, na visão dos espaços alheios, das suas faunas, das suas floras e dos seus habitantes, uma agressividade latente, em eminência de se tornar acção agressiva. O interessante (e que torna a descrição um elemento fundamental) é que a agressividade observada no espaço exótico, inserida como o traço do silvestre num “lugar” por civilizar, raramente seja actuante, manifeste a o seu poder devorador ou letal de forma súbita ou inesperada.
Antes de passar a ser agressão (ou, na maior parte dos casos, não o sendo) a agressão é um dado do observado que o viajante observador não tem dificuldade em reconhecer. A sua antecipação permite-lhe, normalmente, a esquiva ou o contra-ataque eficaz. Mas a figura mais recorrente não é a de uma acção de combate em que o triunfo fica por decidir como um suspense do fio narrativo.
A mais frequente e, cremos, mais próxima do fantasma, é a da latência, a manifestação de uma potência, de uma energia nas coisas que as torna terríficas em si mesmas – mais do que pelo que fazem. Resultando disso que o suspense resida muito mais nos enunciados de estado, ou descritivos, do que nos de acção. Cremos que também neste ponto nos é permitido reevocar o fenómeno singular que é a descrição verniana – é dela que saem os grandes lances lógico-semânticos (em última análise ideológicos, ligados a uma visão do mundo) com os quais se constitui a estrutura causal do narrativo.
Enfatiza-se, nesta energia de agressividade sempre a anunciar-se, que o herói se move não pelo que o adversário faz mas sim pelo que ele é, pelas potencialidades adversas que ele tem ( e que pode ou não pôr a funcionar, nascendo aí uma dinâmica do suspense narrativo) e que o herói deve ser capaz de enquadrar na sua ordem de saber.
Para ser eficaz na ordenação do saber o herói verniano que percorre terras estranhas não pode ser um ocasional avaliador, não pode introduzir a modalização avaliativa apenas em certos momentos do seu discurso. Tem de avaliar rapidamente o Outro, conhecer-lhe o comportamento, as normas por que se rege, tem de o desqualificar esteticamente pelo menos enquanto sujeito para não hesitar, se necessário for, em abatê-lo. Não é por acaso que os indivíduos notáveis pela figura e pelo porte, homens ou mulheres, são sempre ou submissos ou neutros – ou aliados serviçais. São raros os casos de indígenas avaliados como esteticamente positivos – mas quando surgem são aliados: guias, criados. E a sua grande qualidade ética é normalmente a do predador, companheiro de caçadas.
O mesmo padrão se aplica à observação dos animais mas, sendo a sua utilização como alimento permitida liberalmente pelos bons costumes da civilização, normalmente são muito mais apreciados como despojos para comer do que como seres vivos gozando da sua inteira liberdade.
Nunca África é vista, em qualquer dos romances vernianos, como um lugar a ser deixado tal como fora encontrado. O espaço selvagem nunca é o lugar ameno de reencontro com a natureza. Mesmo no último romance, o facto de Blackland se revelar um pesadelo tecnológico não leva à conclusão de que o estado primitivo, a floresta, a vida simples das aldeias, as selvas virgens, são lugares a preservar.
O espaço selvagem é, para o exercício do herói, como mero lugar de jubilação, uma coutada a usar até a última peça de caça estar viva. Como lugar da ameaça do primitivo, do homem selvagem, é um espaço a controlar. Medir é um modo de integrar na enciclopédia. Por fim, se for disso caso, deve civilizar-se pela força das armas.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
Bibliografia:
Activa
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Passiva
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[1] E que, segundo os franceses, se configura na expressão “à vol d’oiseau”, sendo que esta última é, muitas vezes, a expressão usada pelos artistas, críticos e estudiosos portugueses e, mais alargadamente, é usada por franceses e portugueses, para referir qualquer estudo, abordagem, descrição ou compreensão de qualquer assunto, sem ser necessário que a frase se refira à criação pictórica, sendo equivalente a uma outra expressão metafórica, conceptualizante – “dar uma vista de olhos” –, que se refere a toda a observação apressada e sem grande preocupação de atenção. Precisamos o valor operatório da expressão porque, tendo esta amplitude semântica em conta, percebemos melhor que este olhar de alto é generalizador, globalista e afastado da realidade tratada, permitindo tratar os mundos referidos, de modo esquemático e estereotipado.