A convicção como fundamento da prova é um assunto muito discutido no direito e teve como grandes opositores os iluministas que entendiam ser esse um abuso do poder dos juízes. “Eu acho que tens cara de ladrão, logo vais preso até se investigar!”
A prova do crime era livre e arbitrária, e permitia-se que o juiz entendesse como suficiente o que lhe parecia ser, dando origem ao encarceramento ou à limitação de liberdade. A obrigação de fundamentação das provas veio mais tarde, e tornou-se a opção dos países democráticos.
No pico da crise pandémica, e no advento da coação para silenciar os que pensavam diferente – aqueles que então eram denominados negacionistas ou chalupas; os incrédulos para a Igreja Pandémica, que os entendia como inimigos – valia toda a força discriminatória, e valia o antecipar a pena pelo delito não julgado.
O pressuposto é o de que a Comunicação Social deve ser um meio de influência, deve cercear garantias, deve ajudar o populismo penal dos novos fascistas que militam nos partidos, nas facções e nas falanges da nova política.
John Locke (1632-1704) coraria de espanto. Voltaire (1694-1778) rasgaria os seus conselhos aos jornalistas. A pandemia construiu-se de um drama pessoal, com uma banda sonora épica e “amordaçante” que transporta o medo e a insanidade que dele resulta.
Não somos capazes de controlar o vento, não podemos dominar o mar, não conseguimos destruir o avanço dos vírus e a sua relação com a predisposição genética e a sua incorporação na nossa vida. Devemos e tentamos reduzir o custo do seu avanço, mas o seu percurso é como o do mar que quer levar a praia – leva e depois talvez a deixe regressar.
A pandemia trouxe-nos de volta a 1640, com a acusação fundamentada na convicção. Sabemos pouco de quase tudo e a diversidade de actuações permite-nos contradições chocantes. Sabemos que é a primeira pandemia com preferência pelos ricos, pelos doentes bipolares, pela obesidade (que não controlámos em tempo útil).
Sabemos que a morte não dizimou as favelas do México, nem de Luanda, nem de Bombaim.
Sabemos que os resultados da surpreendente Suécia ombreiam, para muito melhor, com os nossos, apesar do que fizemos mais convictamente. A realidade não paga tributo a convicções nem a crenças.
Sabemos que os jovens do futebol foram testados incessantemente e não conhecemos nenhum caso em cuidados intensivos.
Sabemos que foi permitido ao Facebook filtrar expressão, invocar verdades como regra de discurso. O fascismo das multinacionais foi pedido e advogado por cientistas incultos; foi júbilo quando taparam a boca a Trump.
Está legitimado agora pela esquerda o seu próprio silêncio quando o poder mudar de mãos. Aqui bate todo o erro para o qual Agamben, Slavoj Žižek, e vários outros pensadores, têm alertado nesta deriva autoritária que o medo – a emoção primária – justifica.
Neste contexto se enquadra o discurso que ouço quase de queixo caído aos que querem prender os que recusam vacinas, os que querem cercas sanitário-políticas aos opositores, que pretendem tornar asséptica a vida.
Embebidos em medo construído por perigosos servidores da convicção como as televisões e alguns jornais, eles defendem obrigações de separação – muros, portanto, legislação penalizadora do incumprimento, a recusa de tratamento em quem não pensa como eles.
Não lia nada tão fascista desde a minha infância!
Amanhã mandam prender os diabéticos tipo II, exigem chicotadas aos fumadores, recusam internamento aos alcoólicos, tudo gente merecedora do castigo por não se absterem!
Vai ser difícil despir máscaras aos medrosos, aos assustados, aos convencidos. Mesmo se, por exemplo, a realidade numérica diz que morrem três milhões de tuberculose por ano e 2,5 milhões de covid por ano… Vantagem para a tuberculose, e pior ainda foi a enorme vantagem das mortes por doença vascular (AVC, enfarte) no mesmo período.
Diogo Cabrita é médico
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