DGS já comprou 33 milhões de doses

Covid-19: Portugal gasta 500 milhões de euros em vacinas, mas contratos deixaram de ser públicos

white and black plastic bottle

por Pedro Almeida Vieira // Outubro 17, 2022


Categoria: Exame

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A Direcção Geral da Saúde já comprou cerca de 33 milhões de doses de vacinas contra a covid-19, se se incluírem as doações para países terceiros. Mas a transparência destas massivas compras é inexistente: no Portal Base somente constam os primeiros quatro contratos (dois da Pfizer e dois da Moderna), mas com pouca ou nenhuma informação relevante, porque se remete para os obscuros Acordos de Aquisição (APA) da Comissão Europeia, que agora estão em investigação pela Procuradoria Europeia. O PÁGINA UM também revela os contornos das compras da Direcção-Geral da Saúde financiadas a 100% pela União Europeia, que mostram que a Pfizer tem ficado com a “fatia de leão”. Também os detalhes destas compras são desconhecidos.


O Estado português já terá gastado 500 milhões de euros na compra de mais de 33 milhões de doses de vacinas contra a covid-19, mas somente se encontram disponíveis no Portal Base quatro contratos (dois da Pfizer e dois da Moderna), todos anteriores a Fevereiro de 2021, no valor de cerca de 135 milhões de euros.

O secretismo da aquisição nacional de vacinas segue a linha dos designados Acordos de Aquisição (APA), estabelecidos pela Comissão Europeia e as farmacêuticas, e que agora atinge um ponto alto de desconfiança com o anúncio ontem da abertura de uma investigação pela Procuradoria Europeia.

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De acordo com a análise dos dados da Direcção-Geral da Saúde sobre a evolução do programa de vacinação ao longo das várias fases da vacinação – por idade e tipologia – até 10 de Outubro terão sido já administradas pelo menos 26 milhões de doses, das quais quase 19 milhões na primeira fase de vacinação. O reforço vacinal com pelo menos uma dose, sobretudo ao longo deste ano, totalizou cerca de 6,9 milhões de doses. No reforço sazonal, actualmente em curso, terão sido já injectadas quase 817 mil pessoas, sobretudo com mais de 65 anos.

Esta quantidade de vacinas, estimada pelo PÁGINA UM – uma vez que a DGS apenas divulga a percentagem de vacinação por grupo etário – é ligeiramente superior ao número de doses indicada pelo Infarmed no último relatório da farmacovigilância, que tem dados apenas até finais de Setembro. O regulador aponta para a administração, até 30 de Setembro passado, de um total de 25.600.892 doses.

Estes valores têm de ter incluídas as compras para as doações a países terceiros. Até Fevereiro deste ano, o Governo anunciou ter já doado sete milhões de doses de vacinas a países terceiros, sobretudo dos PALOP.

Número de doses administradas em Portugal até 10 de Outubro de 2020. Fonte: DGS (% de população vacinada) e INE (estimativa da população em 2020). Cálculos: PÁGINA UM. Nota: Considerou-se duas doses por pessoa na vacinação primária e apenas uma dose no reforço, uma vez que se ignora quantas pessoas tomaram mais do que um reforço.

Apesar do Portal Base obrigar a incluir todos os contratos públicos, nunca mais foram colocadas as compras de vacinas contra a covid-19 a partir de início de Fevereiro do ano passado. Os dois (curtos) contratos entre a Pfizer e a DGS, decorrentes dos APA, assinados em 9 de Dezembro de 2020 e em 18 de Janeiro do ano passado visaram a aquisição de 4.440.804 e 2.220.596 doses, respectivamente.

O primeiro lote ficou ao preço unitário de 12 euros, mas o segundo já subiu para 15,5 euros. Assim, por estas duas compras à Pfizer, a DGS pagou 54.489.660 euros pelo primeiro contrato e 34.419.238 euros pelo segundo.

Os outros dois contratos que constam no Portal Base foram com a Moderna, não constando sequer o número de doses nem o preço unitário, apenas mencionando o valor total da aquisição. Ambos os contratos foram assinados pela directora-geral da Saúde, Graça Freitas, em 29 de Dezembro de 2020, a um preço de 27.247.155 euros e de 18.780.000 euros. É uma completa anormalidade a existência de contratos públicos desta natureza e dimensão sem qualquer informação nem detalhe.

A farmacêutica norte-americana Pfizer tem sido a preferida nas compras de vacinas contra a covid-19 pelo Estado português. Os contratos não são conhecidos desde Janeiro de 2021.

Deste modo, somente são conhecidos os contratos relativos a compras de vacinas no valor de cerca de 135 milhões de euros, embora sem grandes detalhes.

Com efeito, estes quatro contratos estão enquadrados no chamado Acordo Global de Compra (Advanced Purchase Agreement) assinado entre a Comissão Europeia e as diversas farmacêuticas. A partir desse acordo, cada país ficou apenas incumbido de indicar as doses e os prazos de entregas, mas sem a inclusão de quaisquer cláusulas de responsabilidade civil para as empresas produtoras das vacinas. Ou seja, em caso de problemas, as farmacêuticas descartam-se do pagamento de indemnizações.

A mesma desresponsabilização sucederá com os diversos Estados da União Europeia, como Portugal. Independentemente das pressões sociais e políticas, sendo a vacinação voluntária e havendo um consentimento informado oral, assume-se que as pessoas vacinadas e os pais dos menores assumiram os riscos, pelo que quaisquer danos físicos ou não-patrimoniais nunca serão, em princípio, garantidos pelo Estado nem pelas farmacêuticas.

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Nos dois contratos com Pfizer/BioNTech expostos no Portal Base, ficou assumido que “as circunstâncias de emergência” implicavam que o Estado português “reconhecia que a vacina, e os materiais relacionados com as vacinas, e seus compostos e materiais constituintes, estão a ser desenvolvidos rapidamente”. E, por esse motivo, “o Estado Membro Participante [o Estado português, neste caso] reconhece ainda que os efeitos a longo-prazo e a eficácia da vacina não são actualmente conhecidos.”

Esta autêntica cláusula de exclusão de responsabilidades também se reforça na cláusula que refere que “o Estado Membro Participante reconhece que a vacina não deve ser serializada.”

Por lei, todos os contrato já deveriam constar do Portal BASE, mas o Ministério da Saúde não explica a razão pela qual não foram ainda enviados mais contratos para registo ao Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), a entidade gestora daquela base de dados da contratação pública.

O PÁGINA UM apenas encontrou, através da consulta a documentação solicitada ao Compete 2020, duas referências sobre compras de vacinas pelo Governo, por via de candidatura a programas da União Europeia para financiamento a 100%. A Autoridade Central do Sistema de Saúde (ACSS) obteve um financiamento de 11.209.000 euros em Outubro do ano passado para a compra de vacinas, mas que estranhamente acabou por ser destinado, na verdade, a financiar a DGS a comprar vacinas contra a covid-19.

Graça Freitas, directora-geral da Saúde, não coloca contratos da compra de vacinas contra a covid-19 no Portal Base.

Por sua vez, a DGS obteve um apoio comunitário, também através do Compete 2020, da ordem dos 191 milhões de euros para compra de 12.975.027 doses. Estas compras específicas foram sendo realizadas sobretudo a partir de Junho de 2021, em vários lotes. E percebe-se que a Pfizer passou a ser a farmacêutica preferida.

Com efeito, entre a documentação consultada pelo PÁGINA UM conta-se a referência a 132 compras àquela farmacêutica norte-americana num valor global da ordem dos 130 milhões de euros, enquanto a Moderna registou 17 vendas com um montante acima dos 50 milhões. A AstraZeneca e a Janssen – que não usam a tecnologia mRNA – ficaram com fatias minúsculas deste colossal bolo: apenas conseguiram vender vacinas em montantes da ordem dos dois milhões de euros. O custo unitário médio foi de 14,7 euros.

Mas estas compras da DGS financiadas pela União Europeia – que nem sequer ainda foram auditadas pelo Compete 2020, segundo apurou o PÁGINA UM – representam pouco mais de um terço do total de vacinas administradas.

Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, fez vários acordos com farmacêuticas, mesmo antes de estar provada a sua eficácia, como sucedeu coma Curevac em 16 de Novembro de 2020.

E, em todo o caso, até estas compras se mantêm no segredo dos deuses, desconhecendo-se os compromissos já assumidos com as farmacêuticas numa altura em que a covid-19 se tornou endémica. Tanto em Portugal como nos outros países da União Europeia, sobretudo porque as compras foram negociadas directamente entre a Comissão von der Leyen e as farmacêuticas.

Aliás, nos APA chegou-se mesmo a prometer compras de vacinas a farmacêuticas que nunca as conseguiram concluir, como sucedeu com a do consórcio da Sanofi e da GlaxoSmithKline e com a da Curevac. No primeiro caso, estava já prometida a compra pela Comissão Europeia de até 300 milhões de doses da vacina, enquanto para a vacina da Curevac ficou prevista a aquisição inicial de 225 milhões de doses, bem como a opção de se requerer 180 milhões de doses suplementares se ficasse comprovada a segurança e a eficácia de uma vacina contra a covid-19.

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Este modelo seguido pela Comissão Europeia mostra bem como os negócios das farmacêuticas floresceram ao longo da pandemia, mesmo quando nada garantia que houvesse sucesso na produção de vacinas seguras e eficazes. Por exemplo, a Curevac, uma farmacêutica alemã, obteve 80 milhões de euros de financiamento da União Europeia e um empréstimo de 75 milhões do Banco Europeu de Investimento, além da entrada no capital da KfW, um banco estatal, que injectou 300 milhões de euros para ficar com cerca de um quarto do capital social.

Em Agosto de 2020, a Curevac entrou no Nasdaq, através de uma oferta pública inicial (IPO), conseguindo ainda mais 213 milhões de dólares para se financiar. Começou com uma cotação de 46,55 dólares, chegou a atingir os 116,94 dólares em 1 de Abril de 2021, fruto da especulação e da promessa de contratos. Com o completo insucesso da sua vacina contra a covid-19, começou a despencar. Fechou a sessão de ontem a valer apenas 7,52 dólares, uma descida de quase 94% face ao seu máximo histórico.

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