Foram meses de pedidos recusados, houve um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) ignorado e muita argumentação falaciosa. As Ordens de Miguel Guimarães e de Hélder Mota Filipe saíram derrotadas em toda a linha e foram intimadas a entregar ao PÁGINA UM todos os documentos operacionais e contabilísticos da campanha “Todos por Quem Cuida”, que angariou 1,4 milhões de euros, mas da qual se desconhece detalhes de quem beneficiou. Conheça aqui também todas as peças processuais relevantes desta “batalha jurídica” pela transparência promovida pelo PÁGINA UM, com o apoio dos seus leitores através do seu FUNDO JURÍDICO.
A Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos tentaram tudo; mesmo tudo. Todas as armas e todos argumentos. O bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, nem se esqueceu de informar o Tribunal Administrativo de Lisboa que apresentara uma queixa-crime contra o director do PÁGINA UM em Fevereiro passado, como se isso fosse relevante para o caso em análise. E a Ordem dos Farmacêuticos alertou que a “prestação da informação (…) poder[ia] até servir fins menos idóneos”, como se um órgão de comunicação social regulado se prestasse a torpes fins só por querer analisar documentos.
Porém, de nada lhes valeu. A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, com data de 14 de Outubro, é taxativa: as duas Ordens foram mesmo intimadas a, “no prazo de 10 dias, disponibilizarem ao Requerente [Pedro Almeida Vieira] os documentos administrativos, incluindo de índole contabilística e operacional, relativos a todas as ações desenvolvidas no âmbito da campanha ‘Todos por Quem Cuida’, expurgados da informação relativa à matéria reservada. As duas Ordens foram também condenadas a pagar as custas processuais.
Há dois anos, Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos, com o apoio da indústria farmacêutica, lançaram uma campanha mediática, recorrendo a figuras públicas, para angariarem dinheiro e género para apoiar instituições que lutavam contra a covid-19.
Oficialmente, as duas entidades terão arrecadado mais de 1,4 milhões de euros, que envolveu um polémico donativo de 380 mil euros da Merck S.A. e mais 665 mil euros da Apifarma. Na hora de prestar contas, até por serem entidades com deveres similares à Administração Pública, fecharam-se em copas quando o PÁGINA UM pediu para consultar, em detalhe, os documentos operacionais e contabilísticos, de modo a avaliar a boa gestão da campanha.
Mesmo depois da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) dar razão ao PÁGINA UM em finais de Abril, tanto o bastonário dos Médicos, Miguel Guimarães, como a então bastonária dos farmacêuticos, Ana Paula Martins (actual alto quadro da farmacêutica Gilead) mantiveram a recusa, obrigando assim o PÁGINA UM a entrar com um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa em 23 de Maio passado.
Apesar de ser um processo jurídico urgente, os meses seguintes serviram para as duas Ordens esgrimirem argumentos contra as pretensões do PÁGINA UM, que serviram sobretudo, numa primeira fase, para questionar a idoneidade e intenções do seu director, conforme se poderá verificar pela consulta dos vários requerimentos que se apresentaram, e depois em argumentar que a documentação era demasiado extensa e continha dados nominativos insusceptíveis de serem disponibilizados.
Em tudo, a juíza Márcia Sofia Andrade deu razão às legítimas pretensões do PÁGINA UM, recusando todas os argumentos da Ordem dos Médicos e dos Farmacêuticos.
Com efeito, a juíza relembrou que a jurisprudência dos tribunais superiores “tem vindo a interpretar restritivamente a noção de documento nominativo” quando estão em causa “o exercício de funções públicas”, ou seja, apenas deveriam ser protegidos se contivessem “dados pessoais que revelem a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à visa sexual ou à orientação sexual de uma pessoa”. Nessa medida, a juíza considera que “o nome e IBAN das pessoas e entidades que fizeram doações não configura informação nominativa no sentido próprio”.
Mas a juíza vai mais longe, e acrescenta que “sempre se imporia direito de acesso do Requerente [director do PÁGINA UM] aos documentos solicitados tendo em conta a proteção de tais dados, no âmbito de um juízo ponderativo de proporcionalidade, atendendo ao direito de acesso a documentos administrativos (…), bem como a liberdade de imprensa e a liberdade de informação”, remetendo para artigos da Constituição Portuguesa.
Quanto ao argumento da Ordem dos Farmacêuticos – defendida pela sociedade de advogados PMLJ – de que seria impossível expurgar os dados relativos a suposta matéria reservada e de que os documentos estariam dispersos, a juíza Márcia Sofia Andrade diz que “essa informação não se mostra consentânea” com aquilo que fora anteriormente alegado.
De facto, apesar de a Ordem dos Farmacêuticos dizer que havia documentação espalhada em vários computadores, mesmo de advogados – que beneficiam de sigilo profissional –, e que desconhecia a quantidade total, também adiantava que estava a ser realizada uma auditoria à campanha. A Ordem dos Farmacêuticos – agora liderada por Hélder Mota Filipe, que foi também dirigente do Infarmed durante 11 anos (2005-2016) – pretendia que, no máximo, o PÁGINA UM tivesse acesso apenas ao relatório da auditoria após ser concluído.
Ora, para a juíza, “esse argumento [mostrava-se] contraditório, por um lado, porque a Requerida [Ordem dos Farmacêuticos] aduziu desconhecer ao certo a quantidade de documentos necessários para cumprir a pretensão do Requerente [director do PÁGINA UM], e que os mesmos se encontram dispersos por várias entidades, porém, alegou que fazem parte do objeto da auditoria, o que significa que os documentos se encontram reunidos e são possíveis de quantificar”.
E a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa acrescenta ainda “que também não se afigura congruente” que a Ordem dos Farmacêuticos assevere “que a informação pretendida está sujeita às restrições de acesso, mas com os resultados da auditoria o Requerente vai poder ver a sua pretensão satisfeita”.
Aliás, outro argumento rechaçado pela magistrada refere-se à acusação da Ordem dos Farmacêuticos de que o PÁGINA UM poderia usar a informação recolhida sobre a gestão dos fundos da campanha “Todos por Quem Cuida” para “servir fins menos idóneos”. A juíza assegura que a Ordem dos Farmacêuticos “não concretizou em que se traduzem tais fins”, recordando que esse “ónus […] sobre si impende – de alegar e provar os factos que lhe interessam”.
A Ordem dos Médicos, que teve estratégia ligeiramente distinta – mas similar no propósito de manter um véu escuro sobre a campanha que envolveu 1,4 milhões de euros –, também viu derrocar toda a sua argumentação. O bastonário Miguel Guimarães defendia que o pedido do PÁGINA UM tinha um “carácter manifestamente abusivo”, mas a juíza é concisa em desmontar esta tese: “não existem razões para coartar a regra geral do livre acesso a documentos administrativos”.
Tanto a Ordem dos Médicos como a Ordem dos Farmacêuticos ainda podem recorrer desta sentença para o Tribunal Central Administrativo do Sul, como já fez a primeira entidade no caso dos pareceres técnicos, cuja sentença em primeira instância lhe foi também desfavorável.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 13 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 11.131 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Na secção TRANSPARÊNCIA começamos a divulgar todas as peças processuais dos processos. em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico pode ser consultado aqui.