EDUARDO HALFON, ESCRITOR

‘Na literatura, a infância é a chave’

por Maria Afonso Peixoto // Outubro 20, 2022


Categoria: Entrevista P1

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O escritor guatemalteco Eduardo Halfon esteve em Portugal para participar no FOLIO 2022 – Festival Literário Internacional de Óbidos, e aproveitámos esta visita para falar com o autor, que em 2019 venceu o Prémio Internacional do Livro Latino e em 2007 foi considerado um dos 39 melhores escritores latino-americanos pelo Hay Festival de Bogotá. O romancista acaba de lançar Un Hijo Cualquiera em Espanha, mas o seu mais recente livro a chegar a Portugal é Luto, editado em Fevereiro passado pela Dom Quixote. É o sétimo volume de um projecto literário em que o narrador se chama, também ele, Eduardo Halfon, e partilha da mesma biografia que o autor – desde o nascimento e país de origem, ao passado da família. E as suas raízes familiares são, precisamente, um dos temas mais característicos da sua obra. Neste Luto, Halfon traz-nos a história do sequestro do seu avô em plena Guerra Civil da Guatemala (1960-1996), misturando acontecimentos verídicos com ficção e confundido o leitor sobre o que é apenas arte e o que foi mesmo real… um mistério que Halfon explicou ao PÁGINA UM, numa conversa que aborda também a forma como a escrita tomou de assalto a sua vida, o conflito bélico que dividiu e assolou o seu país no século passado e os problemas que ainda se mantêm.


O seu projecto literário, do qual Canción faz parte, é composto por vários romances, mas este é o segundo a ser editado em português, depois de Luto

Sim, é o segundo volume a ser editado em Portugal, mas não em Espanha. Em Espanha, são já seis livros… ou serão sete? Deixe-me contar [risos]. O projecto começou com o livro El boxeador polaco , publicado em 2008, e foi aí que “nasceu” este narrador, a sua história, a sua voz. É um livro muito pequeno, e que, por acaso, termina em Portugal. No último capítulo, a história desenrola-se na Póvoa de Varzim.

Porquê em Portugal?

Aconteceu. Fui convidado para o festival Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, e escrevi sobre a minha passagem por lá. Acabou por resultar muito bem como final para esse livro. Portanto, publiquei esse livro em 2008 e, três anos mais tarde, uma dessas histórias tornou-se um capítulo de La Pirueta. Dois anos mais tarde, mais uma das histórias entrou num capítulo de Monasterio. Então, Monasterio é o terceiro, Signor Hoffman é o quarto, Luto é o quinto, Canción é o sexto, e acabei de publicar um novo livro, Un Hijo Cualquiera, que é o sétimo. Adoro como soa o título deste último em inglês: Any Given Son. Acho lindo [risos]. Mas, portanto, em português publicámos apenas dois volumes deste projecto. Um projecto que eu não tinha planeado de todo fazer.

Quando escreveu El Boxeador Polaco ainda não sabia que iria dar-lhe continuidade?

Não, não fazia a mais pequena ideia de que iria fazê-lo. Publiquei El Boxeador Polaco, e pronto, pensava que a história terminava ali. Mas, depois, foi evoluindo, as personagens reapareceram… e a história começou a crescer diante dos meus olhos. Agora, não sei para onde está a ir, nem sei quando vai e como vai acabar. Os livros não seguem nenhuma ordem particular. Uma editora pode começar por publicar Luto, e depois os outros. Ou, mesmo um leitor, pode lê-los na ordem que quiser. São apenas sete livros todos contados pela mesma voz. Com o mesmo narrador, os mesmos medos, os mesmos temas, a mesma família, os mesmos desejos… Dou-lhe um exemplo. Canción começa no Japão, e conhecemos Aiko, uma personagem que já tinha aparecido no antepenúltimo livro. Foi uma participação curta, de uma página, e eu não sabia quem ela era, simplesmente apareceu-me. E, agora, já sei quem ela é! Mas foram precisos três ou quatro livros… isto acontece recorrentemente. Por isso, não existe nenhum plano pré-concebido. É um projecto que tem vindo a crescer de forma autónoma, com a minha ajuda.

O narrador é participante e seu homónimo. Além disso, tem também em comum consigo, a idade, a nacionalidade, a história familiar… Por vezes, parece que são exactamente a mesma pessoa. O que é que distingue, afinal, Eduardo, o narrador, de Eduardo, o autor?

Pois, não somos a mesma pessoa. Nós partilhamos o mesmo nome, a mesma “biografia”… mas é só isso. Ele tem uma personalidade muito diferente da minha, um temperamento diferente. Ele fuma, e muito. Eu não. Ele viaja, eu já não viajo. Portanto, nós partilhamos o “superficial”, digamos assim. La fachada, diríamos em castelhano. Mas ele é muito diferente, é toda uma personagem. Eu sei como é que ele fala, conheço a voz dele, que não é como a minha. Ele diz as coisas com muito mais à-vontade do que eu, é muito mais diplomático. Por isso, sim, trata-se de uma personagem. O que torna tudo mais confuso é o facto de ele ter o meu nome. Mas ele é, de facto, uma personagem ficcional.

No final de Canción, há uma passagem que diz que “todo o autor de ficção é um impostor”. Uma vez que, nas suas obras, a linha que separa o verídico da ficção se torna tão nebulosa, como engana o seu leitor? Levando-o a acreditar que o que está a ler aconteceu mesmo, quando não aconteceu, ou o oposto?

Sim, eu sei que engano o leitor, e faço-o de propósito. É como um mágico que faz um truque, e lhe conta como o faz, mas, ainda assim, consegue impressioná-la com o seu truque. Então, eu digo ao leitor que o livro é um romance; é a categoria em que está. Mas, na página 5, ele já se esqueceu disso. E lê-o como se fosse uma autobiografia, como se fosse absolutamente real. E não é, é uma ficção. É verdadeiro, mas não é verdade. São coisas diferentes. Porque é que eu faço isto? Porque eu quero que me leiam assim. Quero enganar o leitor, e que ele leia como se fosse real, porque assim a reação emocional será maior. Ficará mais envolvido com a história. É quase como ler como uma criança, que não se questiona sobre se aquilo é real ou imaginário. Simplesmente é. E isso acontece com os meus livros: o leitor sabe que se trata de ficção, mas esquece-se, e é “engolido” para a história. E creio que é por isso que o faço; é a única resposta que eu tenho para o porquê de escrever desta forma, e de cruzar ficção com realidade. E eu já vi acontecer, vezes e vezes sem conta, pessoas que leram os meus livros como se não fossem ficção.

Falou na reacção emocional de quem o lê. Qual é que tem sido o feedback dos seus leitores?

Depende do livro em questão, porque o sentimento que eu pretendo suscitar nas pessoas difere muito em cada uma das minhas obras. Luto comove muito os meus leitores, especialmente o final, e era isso que eu queria. Queria retratar quase uma death march de crianças, em direcção ao lago… Então, a reacção que tenho dos leitores pode ser muito diferente. Canción é uma viagem à América Latina e ao seu passado, mas também a estes lugares estranhos da minha identidade e à aceitação daquilo que significa ser o neto de um homem libanês. E o livro começa no Japão, mas é por uma razão muito específica: quando fui convidado para esta conferência de escritores libaneses no Japão, que realmente aconteceu, eu pensava que era um engano ou uma piada, porque eu não sou libanês. Mas eles disseram-me “és sim, tens um avô libanês, tens essa herança”. E, na altura, eu não levei isso muito a sério, mas algo aconteceu no Japão que mudou o meu foco. Foi quando comecei a investigar a história do meu avô paterno.

Então, Canción começa com essa conferência no Japão, porque foi esse acontecimento que o levou a descobrir o sequestro do seu avô paterno em plena guerra civil da Guatemala, que é o mote para este livro. Antes disso, não tinha tido curiosidade em explorar esse lado da família…

Exactamente. Eu descobri a história do sequestro depois de ir ao Japão. Antes disso, estava mais interessado em explorar a história do meu avô materno, que era polaco. Então, El boxeador polaco era mais sobre ele; sobre Auschwitz e tudo o mais… Portanto, alguns livros são mais sobre a sua história de vida, a viagem à Polónia e a Israel. E, de repente, o Japão aconteceu e a minha atenção desviou-se.

A sua família tem histórias que dão para muitos livros?

Sim, mas eu acho que todas as famílias têm. Todas as famílias têm histórias, a diferença está só no facto de eu as escrever. Porque todas as histórias que eu conto, antes de as passar para o papel, são apenas memórias familiares, coisas que oiço. Dizem-me, “sim, sim, o teu avô passou por X ou Y…”. O “truque” está apenas em transformar essas histórias em literatura. Mas eu acredito que todas as famílias as têm.

Mas sempre teve interesse no passado da sua família?

Não, nunca. Até começar a escrever. Escrever fez-me ganhar interesse na história da minha família e na História do meu país… porque eu também não estava interessado na Guatemala. Também não tinha interesse no judaísmo, de igual modo, e passei a ter. Estou interessado em tudo isso, como escritor. Eu tenho uma relação muito distante com a minha família, vivo longe e não somos muito próximos. Sinto uma grande distância em relação ao meu país, e em relação ao judaísmo… excepto quando escrevo. Portanto, interesso-me em tudo isto, do ponto de vista literário. São histórias.

E quando é que começou a escrever?

Bom, eu só me tornei um leitor aos 27 anos. Antes disso, não gostava de livros, e nunca lia. Estudei engenharia industrial na faculdade, e só descobri a literatura mais tarde, por acidente. Então, só comecei a escrever por volta dos 30, e publiquei o meu primeiro livro com 32 anos. Precisei de alguns anos para perceber o que estava a acontecer, porque foi muito inesperado, uma mudança abrupta na minha vida. Eu não gostava de livros, não os compreendia, e de repente, algo aconteceu. Houve um clique, e mergulhei nesse mundo. Tornei-me um leitor e não queria fazer mais nada senão ler, durante dois ou três anos. Só queria ler, lia compulsivamente, era um vício. Lia um livro por dia, não queria sair de casa nem trabalhar. E acho que começar a escrever foi uma consequência, uma reação ao excesso de leitura. Li demasiado, e depois pus-me a escrever.

E foi quando percebeu que queria ser escritor que rumou a Paris? Por achar que era o lugar ideal para escrever…

Bem, sim, não fui para lá viver, mas fiz uma viagem a Paris. Quando percebi que queria experimentar isto da escrita, fui para Paris durante alguns meses, com esta ideia romântica e estúpida de que seria perfeito para escrever, mas foi horrível! Foi horrível, fiquei muito doente assim que lá cheguei, estava sozinho, num hotel barato… Foram uns meses terríveis. Ia para os cafés ler, mas a sentir-me indisposto. Mas, algo aconteceu depois! Quando regressei a casa, no dia em que cheguei, recebi uma chamada de um professor de uma universidade a oferecer-me trabalho como seu assistente. Então, agora, quando olho para trás, vejo aquela altura como um ponto de viragem. Antes de Paris, eu era um engenheiro, um filho obediente. Depois de Paris, comecei a trabalhar na universidade e a escrever. E, pouco tempo depois, publiquei o meu primeiro livro. Por isso, Paris resultou de uma forma muito estranha. Não da forma que eu estava à espera, mas de outra.

A partir daí, largou a ideia de que Paris era a cidade idílica para a arte de escrever… [risos]

Eu queria escrever, e não sabia como. Queria escrever em castelhano, mas tinha perdido a prática, porque passei a minha adolescência nos Estados Unidos. Portanto, eu estava muito longe de ser um escritor quando fui para Paris. Foram necessários alguns anos para aprender a arte da escrita.

Em castelhano?

Sim, eu apenas escrevo em castelhano, só escrevo em inglês se mo pedirem. Embora eu ainda pense em inglês. O inglês passou a ser a minha língua mais “forte”.

Mas nunca escreveu um livro em inglês?

Não. Escrevi algumas histórias, ensaios, mas nunca um livro.

Porquê?

Porque a minha infância foi em castelhano. Quando me perguntam porque é que não escrevo em inglês, essa é a minha resposta. Não creio que seja porque castelhano é a minha língua materna, acho que não é esse o motivo…

Não?

Não. Foi porque a minha infância foi em castelhano e, para mim, na literatura, a infância é a chave. É fundamental, e é onde vou constantemente.

Já viveu na Guatemala, nos Estados Unidos, em França, agora está na Alemanha, em Berlim… Onde é que se sente em casa?

Em lado nenhum… Aqui, numa livraria [risos]. Desde criança, nunca senti nenhuma ligação a lugar nenhum. Deixámos a Guatemala quando eu tinha 10 anos e fomos para os Estados Unidos, mas mesmo antes disso, não me sentia guatemalteco. Eu era um miúdo judeu num país completamente católico. Então, 99,999% dos meus conterrâneos eram católicos. Apenas 100 famílias eram judaicas. Por isso, todos os meus amigos eram católicos. E era muito estranho, porque todos eles estavam a fazer a primeira comunhão, celebravam o Natal, a semana Santa… As datas do calendário escolar correspondiam a comemorações católicas. E era do género: “onde é que eu fico nisto?” Nunca me sentia parte do país, era como um mero observador distante. Então, sempre me senti deslocado. Sempre. Em Espanha, no Nebraska, Iowa, Paris, Berlim… Um sentimento constante de nómada, sem raízes. “Desarraigado”.

Não tem sentimento de pertença a nenhuma terra nem a uma religião?

Não, não. E mesmo a literatura não é uma “casa” para mim. Eu não venho deste meio. Estou aqui agora e é o meu trabalho, mas no es mi patria. E era algo fácil para mim, até o meu filho nascer. Depois, as coisas complicaram-se. O meu filho tem seis anos e já viveu em cinco países, fala quatro línguas, tem três passaportes, e nunca teve uma residência permanente. Nós alugamos sempre ano a ano. Portanto, eu estou a ensinar-lhe este estilo de vida nómada, a dar-lhe esta herança é muito difícil.

É sobre isso que fala no livro que publicou agora em Espanha, Un hijo cualquiera?

Falo um bocado, mas não de forma muito directa. Tenho falado mais sobre isto em entrevistas, porque lancei o livro e têm-me perguntado como é que está a ser este nomadismo como pai, que agora sou, e é um bocado assustador, porque não sei se é isto que quero para o meu filho. Quero que ele tenha um lar, que vá para a escola e tenha amigos dos quais não se tenha de despedir após um ano. E até agora não tenho conseguido proporcionar-lhe isso, temos estado sempre a mudar-nos.

As referências às memórias de infância marcam a sua obra. Tem muitas recordações marcantes dessa altura?

Sim, tudo, lembro-me de tudo. Se ler estes meus sete ou oito romances, vê que eu estou sempre a voltar à minha infância. Estou sempre à procura de coisas que me aconteceram em criança, quase como fundamentos para explicar o presente. Por exemplo, em Canción, há uma cena na casa dos meus avós. E no restaurante, há uma parte em que entra uma sequestradora. Então, há sempre estes flashbacks à minha infância. Por isso, penso que regresso sempre a essa altura, para encontrar pequenas histórias ou “explicações”.

Como criança a viver num país durante uma guerra civil, houve momentos traumáticos?

Não, não, de todo. Foi uma altura maravilhosa, feliz. Estava sempre com os meus primos. Nós vivemos na Guatemala durante o período mais violento da guerra civil, os anos 70, mas a guerra travava-se sobretudo nas montanhas – e não na cidade – até ao final da década. Então, um ano antes de sairmos do país – em 1979 ou 1980 – a guerra chegou à cidade, e eu lembro-me disso. Lembro-me de haver sequestros, bombardeamentos, tiros de caçadeira durante a noite e, de repente, o meu pai andava com um guarda-costas. Portanto, eu lembro-me destes primeiros episódios de violência, mas, antes disso, tudo era idílico. Vivi uma infância idílica. Mas tudo começa na nossa infância, a nossa relação com os nossos familiares, com os amigos…

Pode ser terapêutico para um escritor, escrever sobre a infância?

Não, para mim não sinto que seja. Quando escrevo sobre alguma coisa, não sinto que a tenha “descortinado”, ou que a consiga compreender melhor. Na verdade, compreendo-a ainda menos. Não sou uma pessoa melhor quando acabo de escrever um livro, nada disso. Porém, sinto que para os leitores é terapêutico. Ainda há pouco, uma pessoa me disse que o meu livro Luto a ajudou a ultrapassar a fase de luto em que se encontrava. E dizem-me isso com frequência. Creio que nos acontece a todos enquanto leitores: já li livros que me ajudaram a atravessar e a perceber determinadas situações. Mas como escritor, isso não acontece. Pelo menos a mim, não me acontece, não é um processo terapêutico. É apenas trabalho. Um trabalho que envolve a linguagem, sobretudo.

Mostra-nos o poder da arte e dos livros…

Sim, sem dúvida. A arte tem o poder de suscitar reacções emocionais muito profundas. Quando vemos um filme, ou vamos a um museu, ou ouvimos uma música. Acho que algo acontece quando somos confrontados com arte. Não é só com a literatura, todas as artes, e creio que especialmente com a música, que parece que vai directamente ao “sítio certo”. A arte pode comover-nos, arrastar-nos, espoletar uma mudança em nós. E tudo isso acontece na condição de leitor, não como escritor.

Houve livros que o mudaram?

Sim, sim. E sob várias dimensões. Houve livros que me impactaram como homem, e outros que me impactaram como leitor, particularmente naquela fase em que lia compulsivamente. Há livros que li nessa altura, e que, até hoje, continuo a regressar, porque foram tão importantes na minha descoberta da literatura. Roberto Bolaño, Hemingway, Tchekhov, Raymond Carver… Mas, como escritor, foram outros livros. Quando eu comecei a escrever, a forma como eu lia mudou. Porque eu já não estava a ler como leitor, mas como escritor. Pensava: “como é que eles fazem isto?”. Então, comecei a ler de outra forma. Mas sim, há livros que eu ainda “levo” comigo.

Já recebeu vários prémios, incluindo, em 2018, o mais importante galardão literário no seu país, o Prémio Nacional de Literatura da Guatemala.

Sim, é o mais importante na Guatemala, o que não significa grande coisa, porque a Guatemala não é, de todo, um país de leitores, nem de escritores, nem de cultura.

A minha questão era nesse sentido, porque deve ser bom sentir-se reconhecido no seu país, mas, por outro lado, há prémios internacionais de maior prestígio para um escritor…

Foi um prémio complicado para mim de receber, e explico-lhe porquê. Na Guatemala, é considerado a maior honra para um escritor, e atribuem-no anualmente. Mas eu não o queria receber vindo daquele Governo. Não quereria recebê-lo vindo de nenhum governo guatemalteco, porque são todos uma merda. São só políticos corruptos, perigosos e violentos. Mas não queria, particularmente, naquela altura. Por isso, vi-me numa situação muito desconfortável, porque não queria parecer ingrato para com as pessoas da minha terra. Então, arranjei uma solução, que foi receber o prémio, mas doar o dinheiro. E, na altura, considerava que um dos maiores problemas do país era a forma como o governo tratava as mulheres em geral, mas sobretudo as mais jovens. Por isso, entreguei o montante a uma organização que ajuda jovens mulheres. Foi algo simbólico, porque não era uma quantia avultada, mas foi a minha forma de dizer que recebo a honra, mas não consigo aceitar o dinheiro, e prefiro oferecê-lo a uma instituição à qual o Governo não dará nada. E o auditório inteiro estava em lágrimas, porque uns dois ou três meses antes, o Governo tinha queimado um orfanato de raparigas. Morreram 43 órfãs. E foi um grande escândalo na altura. Trancaram as raparigas no orfanato e atearam-lhe fogo. Então, era uma ferida que ainda estava muito aberta, quando eu recebi o prémio e acusei o Governo de não cuidar das suas niñas. “Por isso, o dinheiro vai para elas”, disse eu, e toda a gente começou a chorar. Foi um discurso breve, mas muito importante para mim.

(Foto: Ferrante Ferranti)

Muitas vezes os artistas tornam-se, intencionalmente ou não, activistas políticos, de alguma forma. Como artista, sente que tem algum poder para fazer a diferença no seu país?

Não, não. Eu não acredito que possamos mudar alguma coisa, mas podemos “apontar” para os problemas. Por alguma razão, puseram um microfone à minha frente, como escritor, e posso dizer coisas. Posso dizer “passa-se isto ou aquilo” ou “isto não está bem”, e provavelmente não irá mudar nada, mas pelo menos eu posso chamar a atenção para as situações. Posto isto, há que dizer que em países como a Guatemala, o México… é algo muito perigoso de se fazer. Há jornalistas a serem mortos por falarem. No meu caso, é um bocado diferente, porque eu falo através da ficção. E ninguém lê na Guatemala! Contudo, arranjo sarilhos e recebo ameaças quando dou entrevistas. Não pelos meus livros, porque eles não os leêm, mas quando sou entrevistado, sim, aí já sofro alguma intimidação. É muito real.

Do governo guatemalteco?

Não directamente, mas de pessoas que simpatizam com o Governo. É um grupo pequeno, mas poderoso, da população. Muito virado à direita, e que não quer que se fale do genocídio que aconteceu e de todas as mortes que tiveram lugar durante a guerra civil.

Uma criança a viver uma guerra civil no seu país, ainda não é capaz de escolher um “lado”…

Pois não. Aquilo que faz é escolher o lado dos pais, porque é a história que lhe estão a contar. E os meus pais eram pessoas de classe alta, mais à direita, e, por isso, era esse lado da guerra a que eu tinha acesso em casa. Então, por exemplo, quando eu estava a crescer, a palavra “guerrilheiro” era sinónimo de ladrão, ou meliante. Para os meus pais e para essa parte da população, a guerra era assim: os guerrilheiros eram os inimigos. E, aos poucos, à medida que fui crescendo, especialmente nos meus 20 anos, e quando voltei à Guatemala e casei com a filha de dois guerrilheiros – tanto a minha sogra como o meu genro são antigos combatentes –, comecei a ver que a história que me tinham contado não era verdade, era tendenciosa e enviesada, e tive que me reeducar. E creio que isso acontece com muitas crianças, porque só lhes é contada uma parte da história, que geralmente vem da família. Nós herdamos as nossas visões políticas. Então, para mim, foi um longo processo de perceber a história da Guatemala, que é extremamente complexa. Quem é a vítima: o sequestrador ou o sequestrado? É muito complexo…

A maior parte dos assuntos é mais complexa do que parece…

Sim, e uma criança não tem a capacidade de perceber isso, só muito mais tarde.

A sua opinião polarizou-se para o outro extremo, ou ficou mais no meio?

Esta história, por exemplo, do rapto do meu avô, eu queria mesmo contá-la de um ponto de vista muito objectivo. Queria ser capaz de escrevê-la com imparcialidade e tratar os dois lados por igual. Mas, quem ler o livro, percebe de que lado é que eu estou. Não tenho de o dizer, mas é perceptível, está implícito. O peso da História quase que força o leitor a olhar para ela de um certo prisma. Na altura, o poder estava tomado por ditaduras militares muito, muito violentas, que tinham uma política de genocídio. Não há outra forma de ver a coisa. Enterrava-se corpos o tempo todo. Não há outro modo de o “pintar”, não há como branquear. Aconteceu. Portanto, mesmo que se tente analisar objectivamente, a justiça tem que prevalecer.

O lado bom é sempre o lado mais justo?

Não sei se lhe chamaria o lado bom, mas creio que, eventualmente, a Justiça leva a melhor. Podem ser necessárias décadas, até gerações… Porque há pessoas que não querem que se faça Justiça, ou se esforçam muito para a impedir. Mas ela faz-se. Fez-se aqui, depois da ditadura em Portugal. E é assim em todo o lado.

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