A Direcção-Geral da Saúde (DGS) escreveu ao PÁGINA UM para informar “sobre os motivos para a inexistência de actas formais das reuniões da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19”. Graça Freitas diz, desta vez, que havia “urgência para salvar vidas”, pelo que não houve tempo para actas mas apenas para pareceres, que, diga-se, não identificam sequer quem votou contra. A DGS não quantifica quantas vidas se perderiam se as actas – obrigatórias por lei e que revelariam o debate científico entre os membros – fossem escritas e divulgadas. O PÁGINA UM vai pedir ao Ministério Público que apure se Graça Freitas está a dizer a verdade ou se procura sonegar informação comprometedora, depois de uma sentença do Tribunal Administrativo a ter intimado a mostrar as actas ao PÁGINA UM
A Direcção-Geral da Saúde justifica que foi por causa das “circunstâncias de elevada pressão sobre os serviços de saúde e urgência para salvar vidas” que não se mostrou possível “elaborar as actas formais das reuniões” da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC).
Esta comissão consultiva, criada em Novembro de 2020, conta com 13 membros efectivos, peritos supostamente independentes, a que acrescem 16 membros consultivos. Aparentemente, nenhum terá tido tempo ou disponibilidade – à conta de salvar vidas – para escrever e aprovar actas onde, por exemplo, ficasse expresso quem foram os membros que, por exemplo, votaram contra o processo de vacinação dos adolescentes e das crianças aquando da discussão destas questões em Agosto e Dezembro de 2020, respectivamente.
Recorde-se que a CTVC tem como funções a elaboração de pareceres técnicos sobre as vacinas contra a covid-19 e as estratégias de vacinação, de recomendações sobre os grupos-alvo da vacinação COVID-19 e a sua priorização, bem como apresentar propostas e acompanhar o desenvolvimento de estudos sobre os programas vacinais e ainda pronunciar-se sobre necessidade de formação.
Na carta hoje recebida pelo PÁGINA UM, Graça Freitas diz que “face à urgência na tomada de decisões fundamentadas e fundamentais que permitissem a célere implementação do processo de vacinação da população residente em Portugal, e a redução do consequente impacte da infecção na saúde dos cidadãos, todos os esforços foram alocados para assegurar a atempada fundamentação técnico-científica e ética das decisões e a sua rápida implementação, através da elaboração e atualização de Normas da DGS”.
Mas agora, acrescenta, parece que haverá tempo ao fim de dois anos de existência da CTVC. Graça Freitas assegura que “com a não prorrogação do estado de alerta a 30 de setembro de 2020, bem como com a cessação da vigência de diversos decretos-leis e resoluções aprovadas no âmbito da pandemia, será assegurada a elaboração das atrás das reuniões ocorridas após aquela data”.
Destaque-se, contudo, que nenhum decreto-lei nem nenhuma resolução aprovada no âmbito da pandemia permitia que uma comissão consultiva como a CTVC não tivesse de elaborar actas, até por não ser algo que exigisse um dispêndio de tempo e de recursos relevante.
Apesar da obrigatoriedade legal, e de não existir qualquer regime de excepção – e ser crucial conhecer a fundamentação técnica e científica de cada um dos membros, no pressuposto de que todos pugnavam apenas por princípios éticos e científicos, e não de outra natureza, mormente comerciais –, em mais de duas dezenas de pareceres não terão sido assim, alegadamente, elaboradas actas. Ou então está-se perante falsas declarações agora que o Ministério da Saúde foi intimado pelo PÁGINA UM a disponibilizar as actas.
Esta situação mostra-se ainda mais anormal por terem sido indicados, dentro do grupo, um coordenador – Válter Fonseca, então director do Departamento de Qualidade da Saúde da DGS – e um coordenador-adjunto, Luís Graça. Este médico imunologista – que não andou a salvar vidas nos hospitais –, porquanto é investigador do Instituto de Medicina Molecular na área da regulação de linfócitos, acumula ainda a presidência da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.
Esta entidade é sobretudo conhecida por promover os Prémio Pfizer, que distingue anualmente investigação médica com uma recompensa monetária de 60 mil euros por ano. Além disso, Luís Graça tem tido, a título pessoal, ao longo dos últimos anos, diversas ligações a outras farmacêuticas com interesses nas vacinas, como a AstraZeneca. Da farmacêutica anglo-sueca recebeu oficialmente 3.050 euros nos últimos dois anos. Aparentemente, Luís Graça – que não respondeu às questões do PÁGINA UM – não teve assim tempo disponível para escrever uma acta sequer relativa a uma comissão consultiva para a qual não foi compelido a aceitar.
Também nenhum outro membro da CTVC terá tido tempo para escrever actas nem a responder às questões do PÁGINA UM.
Recorde-se que a justificação da directora-geral da Saúde sobre a inexistência de actas desta importante comissão científica – que a confirmar-se significa que a sua “ciência” da CTVC se sustenta em coisa nenhuma – surge depois de largos meses sem que esta responsável manifestasse essa situação. Pelo contrário.
Em Março passado, o gabinete jurídico da DGS informou o PÁGINA UM que “por despacho da Senhora Diretora-Geral da Saúde, datado de 18 de Março de 2022, foi solicitada apreciação jurídica sobre as duas questões requeridas” pelo PÁGINA UM, a saber: a identificação dos membros que votaram contra e se abstiveram face ao parecer (homologado em 28/07/2021) relativo à vacinação contra a covid-19 em adolescentes, e o mesmo em relação ao parecer sobre a mesma matéria, homologado em 8 de Agosto de 2021. Ora, apesar desse parecer nunca ter sido enviado ao PÁGINA UM, pressupunha que existia um documento oficial onde constavam as orientações de voto e a sua justificação. Ou seja, uma acta.
Também num processo levantado pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, Graça Freitas nunca alegou que as actas não existiam. E nem mesmo nas diversas intervenções no processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, do qual o Ministério da Saúde era réu, foi suscitada a inexistência de actas. Só agora que uma juíza sentenciou a obrigatoriedade de entrega, sob risco de multa, vem a DGS dizer que não há actas… porque se esteve sempre a salvar vidas.
O PÁGINA UM vai solicitar ao Ministério Público diligências para apurar se as actas não existem mesmo ou se estão a ser sonegadas ou mesmo eliminadas.
N.D. Todas as diligência do PÁGINA UM nos processos entrados no Tribunal Administrativo, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 13 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 11.131 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Na secção TRANSPARÊNCIA começamos a divulgar todas as peças processuais dos processos. em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico pode ser consultado aqui.