Para começar, sobre consumo de hidratos de carbono, digo-vos já que sou um fã de arroz. Massa é porreira e tal, mas, se o Mundo estivesse à beira do fim, a minha escolha para decorar o bunker seria um saco de 5 quilos de arroz. Está comigo desde que nasci, nunca me desiludiu e, convenhamos, fica bem com tudo. Tudo. Desde a mesa mais pobre ao prato mais gourmet. Até naquelas coisas de fusão aparecem uns bagos coloridos.
O discurso dos liberais portugueses é um pouco como o arroz. Dá para juntar a quase tudo e, com alguma imaginação, até sentimos sabores diferentes. O problema está somente no sal da retórica utilizada. Nunca, em momento algum, se ligam os pontos com o tempero mestre, e tal como um arroz mal feito, uma pessoa acaba com aquela cara enrugada do “falta sal” quando os ouve.
Assim, vamos ao que interessa: os projectos do departamento de marketing da Iniciativa Liberal (IL) seguem a metodologia Agile. Traçam objectivos, executam e avaliam a cada 15 dias. Dali resultam maravilhosos outdoors e toda uma comunicação bastante atrativa. E não estou a ser irónico.
Inevitavelmente, a realidade contraria as jogadas de marketing ao fim de umas semanas e, nessa altura, aparece o plano B (uma espécie de emenda ao Agile), que consiste num longo texto do Carlos Guimarães Pinto a explicar-nos que não percebemos nada do que eles queriam dizer. Os liberais seguem o mantra e respiram de alívio, esperando que o próximo exemplo de liberalismo em qualquer parte do Mundo, de facto, resulte.
Quando Liz Truss entrou a matar em Downing Street com aquela ideia de reduzir impostos aos mais ricos porque isso, segundo ela, faria o dinheiro chegar às camadas mais pobres, fiquei a pensar nos inúmeros exemplos de ricos que libertam dinheiro para os pobres. Como aquelas cascatas de champanhe nos casamentos onde, a partir de um copo no topo da pirâmide, se enchem os demais. Curiosamente não me lembrei de nenhum exemplo, mas também não sou grande coisa de memória.
Liz Truss anunciou que reduziria os impostos das empresas e não taxaria os lucros extraordinários. Ora, isto foi exactamente o que Carlos Guimarães Pinto defendeu num debate televisivo a propósito dos lucros extraordinários da GALP. O departamento de marketing da IL começou a pintar os cartazes com a Liz, mas antes de darem a segunda demão já os mercados, também amigos dos liberais, explicaram que a Truss não sabia o que estava a dizer.
A libra desabou e os juros da dívida dispararam. O caos instalou-se e Liz ficou isolada, acabando por substituir o ministro das Finanças por outro que se aguentou três dias. Os mercados decidiram que Governo deve vigorar, substituindo os eleitores. Contudo, se forem perguntar aos liberais eles vão dizer que só defendem os mercados até ao momento em que eles definem de facto o rumo das nações.
A IL reuniu de emergência e afinou o discurso. “O que é que se pode arranjar para dizer que somos diferentes?”, perguntou o Cotrim. Guimarães, o mais afinado estratega do momento, soltou o Eureka! e apontou para a despesa pública. Liz ia reduzir impostos e aumentar a despesa. A IL defende a redução de impostos e da despesa. E deixou cair o microfone…
Houve palmas e suspiros de alívio. Estava feito! Por hoje…
Mas um dos estagiários, sentado lá ao fundo, perguntou: “então, e se nos questionarem sobre o nosso modelo de liberalismo, dizemos que seguimos qual?”
“Nórdico, pá!!”, gritou o Cotrim enquanto acabava o chá de tília. “Mas…”, ripostou o outro, “esses gajos não têm uma despesa enorme porque 30% do mercado de trabalho é Função Pública? Como podemos dizer que defendemos o modelo nórdico e despesa baixa? Os gajos dão tudo de borla!!”
Cotrim coçou a cabeça e Guimarães agarrou no queixo. Voltaram ao brainstorming com termos em inglês, e outro estagiário, mais desatento, gritou: “e se fosse liberalismo do Báltico?? Já temos os cartazes e tudo!”. Fez-se silêncio na sala e rolaram olhos naquele sentimento de “f***-se, quem é este gajo?”. O parceiro de carteira disse-lhe ao ouvido que a Estónia já estava com a inflação nos dois dígitos e os cartazes jaziam na salamandra da sede.
“E se assumíssemos a nossa Meca?! O liberalismo americano: cada um por si e Deus por todos?”, sugeriu um daqueles deputados que fica atrás do Cotrim na Assembleia da República a exclamar sempre “muito bem!” mas que ninguém conhece.
Guimarães, que deu aulas em Hanói e se fartou de comer arroz, agarrou nos cabelos a pensar como é que tinha ido ali parar.
O problema não está tanto no liberalismo porque esse tem poucos segredos e, com uma ou outra variante, nós percebemos o caminho que nos destina. Ou melhor, como diria um liberal, nós conseguimos visualizar a big picture. E os membros da IL também sabem exactamente o que defendem: é arroz, branco, com açafrão, chau-chau, tomate. É o tipo de arroz que cada um de nós quiser e encaixa em todo o lado. Agora basta que nos consigam convencer que, mesmo sem sal, faz falta e sabe bem.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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