Há metáforas tramadas. Por exemplo, eclipse.
A Lusa – sempre a Lusa –, useira e vezeira, em mau serviço público, escreveu ontem sobre um eclipse que seria visto hoje, neste momento que vos escrevo. Erradamente.
Mal não traria ao mundo se, enfim, mesmo existindo esse mau serviço pago pelos nossos impostos, a imprensa mainstream não fosse preguiçosa e, mais ciosa de cliques do que em informar e diversificar, e não se predispusesse acriticamente a divulgar takes atrás de takes vomitados por esta agência noticiosa do Estado e da Global Media, que são duas entidades que estão bem uma para a outra, para mal dos nossos pecados.
Vejamos a tal notícia do eclipse parcial do Sol deste ano, tratada por um take da Lusa, e viralizada pela imprensa mainstream. Pela noite dentro, em cerca de uma hora, o dito take foi copiada pelos principais órgãos de comunicação social, fluindo em títulos e textos similares. Um fartote, ontem à noite:
O Diário de Notícias, pelas 20:44 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal se tempo deixar”.
A Rádio Renascença, pelas 20:49 horas, titulava: Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal… se o tempo deixar”.
A TSF, pelas 20:56 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira se o tempo deixar”.
O Observador, pelas 21:40 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol visível esta terça-feira em Portugal. Mas é preciso que as condições meteorológicas o permitam”.
O Público, pelas 21:42 horas, titulava: “Eclipse parcial do Sol poderá ser visto em Portugal – se o tempo deixar”.
O Jornal de Notícias, pelas 21:44 horas, titulava: “O último eclipse parcial do Sol de 2022 é esta terça-feira”.
Em hora indeterminada, mas perto das 22:00 horas, a CNN Portugal titulava: “Vai poder ver em Portugal um eclipse parcial do Sol… se o tempo deixar”.
Idem, a SIC Notícias titulava: “Eclipse parcial do Sol visível na terça-feira em Portugal”.
E podia continuar… Houve muito mais a viralizar o infecto take da Lusa.
Todas notícias iguais. Com variações de palavras no título. Quase sem alterações no conteúdo, remetendo todas até para um site credível de Astronomia, o Space.com.
Sucede, porém, que todas sem excepção eram completamente falsas. E para confirmar isso bastaria, enfim, clicar no próprio site do Space.com…
Na verdade, para se conseguir ver em território português este eclipse solar, que está neste momento a ocorrer, não precisaríamos apenas que o São Pedro ajudasse – como até ajudou, porque está um ensolarado dia (escrevo-vos de Lisboa); precisaríamos que, em vez de ter sido Napoleão a invadir Portugal, fosse D. João VI a invadir a França e Paris fosse ainda hoje parte de Portugal.
E o mais ridículo é que o próprio site referenciado no take da Lusa, e replicado por toda a imprensa mainstream, explicitava de forma taxativa que o eclipse seria visível na Europa, excepto em Portugal. Até um mapa dinâmico mostravam, e até se podia colocar um pin para confirmar se em determinado local seria visível ou não,
Nenhuma alminha, antes de colocar a notícia no ar, foi confimar a veracidade daquilo que oferecia aos seus leitores. Nem o jornalista da Lusa se deu ao trabalho de entrar no site que referenciou no take. Nem ninguém com responsabilidades editoriais dos outros órgãos de comunicação social foi confirmar.
Sai na Lusa, sai tudo igual
Enfim, a Lusa fez (mais) uma fake news. E a imprensa mainstream num par de horas tratou de a viralizar, tornando-a “verdadeira”, mesmo que de forma efémera.
De facto, é certo que, com as evidências (não houve eclipse visível em solo português, apesar do céu limpo), e certamente chamadas de atenção de leitores, muitos órgãos de comunicação social foram “corrigindo o tiro”, embora muitos sem assumir o erro, a fake news, que tanto os preocupa mas apenas se forem nas redes sociais e em temas em que se mostram comprometidos.
Este caso do falso eclipse em Portugal não teria grande gravidade se não fosse paradigmático do clima desbragado de notícias erradas, de autênticas fake news, que grassam diariamente pela nossa imprensa mainstream: incompetente, negligente, preguiçoso, homogénea ou monotemática, sem mostrar competitividade, não se importando de fazer igual aos demais, replicando textos como vírus, independentente de serem verdadeiras ou falsas.
Fazem tudo isto em conjunto, em manada.
E com isto eclipsam a sua credibilidade, esquecendo que sendo uma evidência que existem fake news a pulularem nas redes sociais, tal fenómeno se deve ao actual descrédito do jornalismo e dos jornalistas. Por causa de “coisas” como o eclipse.
Viu-se isso vezes sem conta nos últimos anos, com a pandemia e a forma manipulatória, enviesada, incorrecta e mesmo falsa (por omissão ou de forma explícita) de muitas notícias. Vê-se isso agora, vezes sem conta, com a propaganda em redor de muitos assuntos, desde a guerra da Ucrânia às medidas governamentais, e tendo muitas vezes como rastilho a agência noticiosa do Estado.
A Lusa faz e a imprensa mainstream transforma-se numa caixa de ressonância que, em demasiados casos, qual Midas, transmuta merda em ouro, mentira em verdade.
Lamentavelmente, ao contrário do que sucede nos eclipses, que duram poucos minutos, temo que este eclipse do jornalismo perdure, ajudando a corromper a nossa já débil democracia.