Em primeiro lugar, há que tentar compreender quem, à face da Lei, deve ser considerado inimputável.
Para haver um crime, a acção que lhe corresponde tem de ser culposa.
Isto é, deve haver um juízo de censura que se dirige ao autor do crime.
Logo, atendendo aos seus conhecimentos e às circunstâncias concretas do crime, este pode ser censurável ou não.
Ora, o inimputável é aquele que é incapaz de culpa. Ele pratica condutas que não são admitidas pelo Direito – são ilícitas – mas sem culpa.
O regime da inimputabilidade está previsto nos artigos 19.º e 20.º do Código Penal.
No artigo 19.º estabelece-se a inimputabilidade em razão da idade: “os menores de 16 anos são inimputáveis” e inclui, para estes, um regime em risco (assistencial) e um outro com medidas tutelares educativas, sem caráter sancionatório, mas antes corretivo.
O artigo 20.º, por sua vez, consagra a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica.
Essa anomalia tem de impedir o agente de distinguir aquilo que é permitido do que não é permitido (o lícito do ilícito). Ou, conseguindo distinguir, ser-lhe impossível controlar-se e agir de acordo com o que é permitido.
Em termos de consequências da classificação como imputável ou como inimputável, há que ver a diferença entre penas e medidas de segurança. No Direito Penal, não pode haver uma pena sem que haja culpa; ora, ao inimputável, por ser incapaz de culpa, não pode ser atribuída uma pena.
Portanto, o ordenamento jurídico-penal, deve limitar-se a aplicar-lhe medidas de segurança.
Estas não têm como objetivo a punição do autor do delito mas, atendendo à sua especial perigosidade, a proteção da sociedade.
Assim, o inimputável não pratica crimes, mas tão só ilícitos e devem ser-lhe aplicadas medidas de segurança, e não penas, dado que essas são dirigidas a quem é passível de atuar com culpa (imputável).
No entanto, qual é a realidade em Portugal?
O número de camas, nos hospitais psiquiátricos, tem vindo a diminuir, mas o número de doentes mentais não.
Pelo contrário.
Portugal tem uma das mais elevadas prevalências de doenças mentais da Europa.
A par desta constatação surge uma outra que demonstra que há um défice de cuidados acentuado e que perto de 65% das pessoas com perturbações mentais moderadas e 33,6% com perturbações graves não recebem cuidados de saúde mental adequados.
Resultado provocado por estas duas situações: quem acompanha e trata destes doentes são as suas famílias, ou profissionais em infraestruturas que não estão vocacionadas para o seu tratamento.
Quando os doentes mentais se tornam perigosos, com agressões a familiares ou amigos, ao ponto de estes terem de ser observados em hospitais, há a obrigação da intervenção das autoridades.
Os problemas agravam-se, então, sobremaneira.
Os relatórios das agressões têm de ser enviados aos Tribunais o que leva, em muitas ocasiões, a que os Juízes decretem o internamente compulsivo desses doentes em hospitais psiquiátricos.
Dada a falta de vagas nestes, contudo, a opção tem sido, muitas vezes, o “internamento” em prisões.
Daí que, nas nossas cadeias, haja presos que nunca foram condenados por qualquer delito.
Os números da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, de 2021, indicavam 183 inimputáveis, com medidas de segurança aplicadas, internados em clínicas psiquiátricas prisionais e 195 em clínicas e hospitais psiquiátricos não prisionais.
Estar preso por ser doente é algo que ultrapassa tudo o que é admissível e nos deveria envergonhar, a todos, enquanto cidadãos.
À “APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso” foram relatados vários casos de familiares revoltados com o modo como os seus são tratados pelo Estado.
Um pai foi agredido pelo filho que lhe fez um golpe, no pescoço, com um “x-ato”.
Identificado no hospital viu o seu caso levado a Tribunal.
O Juiz decretou que o jovem fosse internado no “Pavilhão Forense” do Hospital Júlio de Matos. Não havendo vagas foi conduzido ao Estabelecimento Prisional de Lisboa onde ficou mais de três anos.
O pai diz-se arrependido de ter denunciado o filho.
E não se pense que estes casos são raros.
São dezenas de cidadãos nestas circunstâncias em diversas cadeias portuguesas.
O Estado, incapacitado de os tratar condignamente em hospitais apropriados, opta por escondê-los atrás dos muros das cadeias com gravíssimo prejuízo para eles (que são, diariamente, alvo de todo o tipo de abusos) e dos restantes reclusos, guardas prisionais e funcionários, que podem ser alvo de ataques violentos de quem não se consegue controlar.
Problemas que, repito, deveriam envergonhar todos aqueles que aceitam estas situações degradantes como se tal não fosse a demonstração mais evidente de vivermos num Estado falhado que despreza aqueles pelos quais devíamos zelar com mais cuidado e de modo prioritário.
E já nem quero perguntar se não estaremos perante uma ilegalidade e uma inconstitucionalidade.
Temos, agora, como Director-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, um investigador e psicólogo forense, o Prof. Doutor Rui Abrunhosa Gonçalves, com vários trabalhos publicados sobre este tema e conhecido crítico da situação que relatamos.
Tenhamos, então, esperança numa mais que premente alteração ao actual sistema.
Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso
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