Quando vi as imagens de atum protegido por sensores e caixas rígidas, que habitualmente via em iPhones e artigos do género, pensei que fosse uma campanha de marketing da Bom Petisco.
Convenhamos, seria uma bela tirada de propaganda, elevando o valor de cada lata a algo que deveria ser protegido por um sistema de segurança mais caro que a própria lata.
Depois de perceber que era real, que, de facto, se gastavam sensores em latas, a minha interrogação foi mesmo para o custo-benefício da operação. Quantas latas é que são precisas nos bolsos alheios para pagar o custo dos sensores?
Parecia-me uma tentativa de matar uma mosca com um elefante. Mas não. A realidade, aparentemente, não só justifica como ainda poupam dinheiro com os sensores, segundo uma responsável de uma grande superfície que comentava os porquês aos microfones de uma jornalista com a mesma dúvida.
Aritméticas de gestão à parte, o que isto significa é que estamos perto de bater no fundo. Quando o roubo de bens de primeira necessidade é de tal ordem que justifica este tipo de investimento na prevenção, percebemos que as famílias estão a passar por dificuldades.
Não seria no entanto preciso chegar ao caso das latas de atum para percebermos isto. A estatística é pública; sabe-se hoje que, segundo dados do Pordata, cerca de 43% da população portuguesa vive em risco de pobreza antes das transferências sociais (pensões, apoios, etc).
Ou seja, para quem critica o Estado Social e defende um país com menos impostos, menos solidário e sem rede para os mais desfavorecidos, fica a informação de que quase metade da população portuguesa estaria abaixo do limiar da pobreza sem a componente de apoio social.
Claro que devemos discutir como sair desta situação e conseguir crescimento económico, para que a população não dependa de transferências sociais, mas talvez não seja este o momento.
Depois de dois anos e meio de pandemia, perda de empregos e direitos fundamentais, seguiu-se uma guerra, inflação, novamente perda do poder de compra, redução de salários e pensões, em simultâneo com uma enorme carga fiscal.
Portanto, com os jovens diplomados a abandonar o país, os portugueses cada vez mais pobres e o Estado a arrecadar uma fortuna em impostos extraordinários, enquanto a União Europeia investe o futuro de todos numa guerra sem sentido, não sei bem como é que se pode falar na redução dos apoios à população.
E reparem: os dados do Pordata são de 2020. Ou seja, a situação hoje ainda deve ser bem pior, e é mais ou menos fácil de perceber que o número de pobres cresceu nos últimos dois anos.
E se a União Europeia aceita dispensar 19 mil milhões de euros para a reconstrução e armamento da Ucrânia, poderá certamente devolver-nos, a todos os europeus, parte dos impostos que a inflação nos leva. Pode aguentar as taxas de juro, pode segurar a voracidade dos bancos, pode aumentar salários na exata medida da inflação. É difícil? Não, não é. São opções políticas.
Ao contrário do que defendia o Governo do PS, a inflação não será temporária e dificilmente os preços voltarão aos níveis pré-guerra. Não podemos continuar a discutir o Orçamento de Estado ou qualquer política vindoura com base em fundamentos errados.
Basta ir a um supermercado para ver produtos com aumentos de 15, 20 ou 30% e depois, chegamos a casa, e vemos o Governo a anunciar aumentos de 5% como sendo 1% acima do valor estimado para a inflação. Parece uma conversa de surdos. Ou então uma conversa onde um dos lados assume que do outro estão apenas idiotas. Adivinhem lá qual é o nosso lado?
Fui muito crítico na altura dos confinamentos, e escrevi, repetidamente, que o Estado Português optava por meter gente saudável em casa, pagando os lay-offs à custa do aumento da dívida. E, na altura, lembro-me de ouvir aquela conversa de que “tínhamos que salvar vidas” (como se dependessem de confinamentos) e que “logo se veria a Economia”. Ora, o que acontece agora é uma consequência directa disso.
O Governo do PS apresenta agora, orgulhosamente, um orçamento de “contas certas”, ou seja, recusa endividar-se mais, uma vez que passou os últimos dois anos a fazê-lo. Entretanto a inflação comeu o poder de compra e não é possível aumentar salários na mesma proporção porque, como nos explicaram na concertação, há que manter o défice controlado.
Meus amigos, isto é exatamente uma factura das políticas da covid-19 e um resultado do “a Economia logo se vê”.
Contribuimos todos para o nosso próprio empobrecimento e ainda batemos palmas à janela.
José Soeiro, do Bloco de Esquerda, explicou na Assembleia da República, repetindo um número já feito com lego, de que forma o Governo estava a reduzir as pensões dos mais idosos. O caso da redução efectiva das pensões é ainda mais escandaloso porque segue um foguetório onde esta foi apresentada como um aumento, e acabou, como hoje sabemos, num simples corte e, ainda por cima, ilegal.
Novos ou velhos, com ou sem emprego, hoje a realidade do país é de uma pobreza que já não é envergonhada. É mesmo assumida.
Mais de três décadas depois de subsídios europeus, conseguimos, ainda assim, não ter produção tecnológica significativa, só apostamos fortemente no turismo e dependemos, quase em exclusivo, dos quadros comunitários de apoio para comer. Somos cada vez mais a República Dominicana da União Europeia.
O jargão “a Economia logo se vê” deveria estar a ser usado agora. Era hoje, e não em 2020, que deveríamos mandar a Economia às malvas e ter folga orçamental para combater o empobrecimento generalizado que está a acontecer à população portuguesa. Ou pelo menos, o Governo deveria conseguir reverter os impostos extraordinários a favor dos salários dos trabalhadores, dos impostos da empresas e das casas das famílias. Era o mínimo decente a fazer. E já nem falo da famosa bazuca, porque essa sabemos estar, desde a sua origem, destinada aos amigos do regime.
Entretanto, esta semana fizeram-se testes nucleares na Europa, numa “missão de rotina”, que a NATO nos garante ser apenas para rodar os bombardeiros B52 que estavam a enferrujar lá no hangar no Dakota do Norte. Portanto, não só compreendemos que estamos a empobrecer a uma velocidade estonteante como, ao contrário do que escrevi no início deste texto, ainda temos alguma folga até batermos mesmo lá no fundo.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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