ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Da culpa e da inocência das árvores

brown and blue wallpaper

por Mariana Santos Martins // Outubro 31, 2022


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Espalhadas pelo mundo existem várias árvores mais velhas que este império, mais velhas até que o anterior e o anterior a esse, em silêncio, a observar.

A casca da velha árvore fica espessa, nesta contemplação, dura, cansada mas firme.

Quantas guerras já viu a árvore dos mil anos, e que mesmo assim dá fruto?

girl in pink jacket and pink pants climbing on brown tree during daytime

Com dois mil trezentos e oito anos, no Sri Lanka permanece uma figueira de nome Jaya Sri Maha Bodhi. Diz-se ter Buda ali atingido a iluminação, enquanto ela lá estava, simplesmente, a observar. A seus pés morreram pessoas, em massacres, como o de 1985, quando uma milícia separatista tentava reagir contra a perseguição da população Tamil no nordeste do país, olho por olho. Hoje a pátria de Jaya tem uma inflação de 73,7%, e na sequência de protestos desesperados, que chegaram a invadir o palácio presidencial, a vida continua, miserável, restando à figueira assistir.

No Líbano, um olival que se mistifica como a fonte do ramo de oliveira que a pomba devolveu a Noé, conta já mais de cinco mil anos, embora ninguém arrisque ferir as Irmãs para contabilizar a sua real longevidade.

Quanto já viram e viveram estas oliveiras ao ponto de estarem inscritas no Antigo Testamento? Enquanto isso, hoje o Líbano é flagelado por um surto de cólera, a população encolhe-se há tanto tempo sem rede eléctrica e, após a explosão em Beirute em 2020, ninguém se incomodou de saber ao certo se aquele povo precisava de nós e quem lhe tinha feito tal maldade.

O Cipreste de Abarkuh, no Irão, com mais de quatro mil anos, que, reza a lenda, terá sido plantado pelo próprio Zaratustra, sentirá o ruído que ecoa da revolta das mulheres que cortam o cabelo em protesto contra a lei sharia, talvez anunciando o secularismo iraniano que a Pérsia não viu, ou talvez servindo de combustível para pavimentar a estrada americana para leste.

Um teixo em Fortingall, no Reino Unido, conhecido pelo seu veneno, com mais de quatro mil anos estimados de contemplação, e que foi entretanto murado para sua protecção, suspira certamente pela libertação. Enquanto assim está, Assange apodrece na cadeia, perdido num limbo, esquecido por quem serviu.

Curioso como um cidadão australiano, de repente, não tem pátria que o defenda. Assistimos que nem árvores imóveis, a tiranos de escalpe na mão, a arfar de regozijo por mais uma opressão enquanto maquinam estratégias que arredondem o gado em direcção ao matadouro em nome de países e muros e campos de girassóis cobertos de neve.

Venham os discos voadores – e que não saibamos o que é o sabor de sangue e ferro na boca.

macro shot of brown tree

Em 1932 iniciaram uma experiência em Tuskegee, no Alabama. Recrutaram centenas de homens afro-americanos que viviam na pobreza, com a promessa de cuidados de saúde gratuitos. O objectivo era, porém, observar o que lhes sucedia em caso de apanharem sífilis que não fosse tratada, muito embora ninguém os informasse desse detalhe. Muitos morreram, provavelmente incontáveis, em troca de uma mão-cheia de nada. Apesar da penicilina estar largamente disponível a partir do final dos anos 40, a sádica experiência durou até 1972. Só se revelou a verdade em 1979. Só foram pedidas desculpas em 1997.

Nos anos 60 do século XX, alguns cientistas laboravam na teoria do AZT como uma solução para combater alguns cancros, mas a ideia não pegou por falta de eficácia, nem atraiu investimento. Nos anos 80, outros cientistas agarraram a oportunidade da crise do HIV para voltar à carga com este veneno, e utilizaram-no como resposta sem direito a muitas perguntas. De novo, muitos morreram, provavelmente também difíceis de contabilizar, e ainda hoje se tenta raspar a neve destas lápides a ver o que lá está escrito.

Na mesma época, outros laboriosos cientistas desenvolveram e testaram a tecnologia mRNA. O que queriam ser quando fossem grandes? Os senhores que curariam o cancro.

man under tree during daytime

De novo, no cancro não funcionou. Mas recentemente, devem ter ouvido falar, outros agarraram a oportunidade de um vírus respiratório que um morcego a sangrar passou a um pangolim, que depois foi comido numa sopa por um chinês [estou a brincar, mas tomem lá um vídeo todo catita que também foi disseminado em 2020 e as mais recentes correcções).

As árvores são pilares entre este mundo e outros mundos, entre o que está em baixo, invisível e o que está em cima, inalcançável. No meio podemos nós escavar, ou trepar; nelas temos a certeza de encontrar a raiz das coisas, e do seu fruto, ou sua seiva, poder vir alimento.

Os outros pilares, os que nós fizemos com grande artifício – a banca, a big pharma, o industrial military complex –, esses, arrasarão todas as árvores pela pura ganância de se manterem a devorar o mundo.

Que culpa têm as árvores?

Mariana Santos Martins é arquitecta


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.