Hoje presenteio-vos com tema escatológico. Não no sentido filosófico (e teológico) da expressão, embora tenhamos de pensar seriamente no nosso iminente fim se sua Eminência o Serviço Nacional de Saúde não atinar com o seu fim, isto é, com o objectivo para o qual o seu criador – em minúscula, por ser ente político – o fez.
Na verdade, é fezes – é, podemos assim dizer, na acepção coprológica da função terminal do processo digestivo, sobre fezes que eu aqui obro. Escatologia dura, portanto, confesso-vos.
E assumindo ser questão que “mete nojo à vontade mais gulosa” – como glosou Bocage (ou terá sido o Abade de Jazente?) no soneto Cagando estava a dama mais formosa –, mesmo assim, sendo “fedentinosa” coisa, necessário falar se mostra, mesmo que não se olhe nem se cheire.
Pois bem: temos por aqui um (espero ser problema passageiro) pequeno desarranjo intestinal que, enfim, após duas recentes passagens pelas urgências, com terríveis mas efémeras dores abdominais (para os homens sempre insuportáveis) sem diagnóstico conclusivo – análises e raios X deram OK –, deu como sugestão uma consulta da especialidade na competente especialidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Claro. “Marquei através do sistema”, garantiu-me a médica nas urgências do São José. “Mas é capaz de demorar”, avisou.
Entre a segunda ida às urgência, em 3 de Outubro, e marcação da consulta da especialidade de Gastrenterologia passaram duas exactas semanas. Acresceu mais uma semanita e pouco para expedição e recepção da carta. Leio-a para vós, mas está aqui: “Comunica-se que tem consulta marcada na especialidade acima referida [Gastrenterologia] para as 15:00 horas do dia 24 DE AGOSTO DE 2023 em Capuchos Pav Consult.”, isto é, no Hospital dos Capuchos, em Lisboa.
Portanto, marcaram-me uma consulta para daí a 311 dias. Um bebé demora menos tempo a criar-se e a sair da barriga da mãe. Ao dia que aqui vos escrevo, faltam ainda 294 dias! Até lá espero dar muitas descargas de autoclismo… de contrário, rebento!
Mas, entretanto, lembro-me que deve haver, senão uma lei, pelo menos bom senso sobre as consultas do tão apregoado e elogiado SNS, que agora até tem um director executivo novinho em folha.
E parto à pesquisa.
De acordo com a Entidade Reguladora da Saúde, “por regra, a primeira consulta de especialidade hospitalar deve ser realizada em 30, 60 ou 120 dias seguidos e contados a partir do registo do pedido da consulta efetuado pelo médico assistente do prestador de cuidados primários, através do sistema informático que suporta o Sistema Integrado de Gestão do Acesso (SIGA SNS), consoante a consulta seja de realização ‘muito prioritária’, ‘prioritária’ ou ‘normal’, respetivamente.”
Portanto, sobre o meu caso, e considerando que me devem ter classificado como situação “normal”, estou bem tratado… ou tramado.
Vou ao site dos Tempos Médios de Espera do Serviço Nacional de Saúde (SNS) – que, em tempos houve políticos que até julgavam que os contribuintes devem saber o que anda a fazer – para aferir a situação concreta do Hospital dos Capuchos para o serviço de Gastroenterologia.
Pasmo. Nunca sou dos que pensam que as coisas más só a mim sucedem. Nos registos, surge uma pessoa com estado considerado “muito prioritário” que vai ter de esperar 50 dias pela sua consulta, exactamente igual ao tempo de espera média dos 40 casos “prioritários”. E depois contam-se 700 pessoas em condição “normal” com tempo de espera médio de 122 dias. Portanto, estarei largamente acima da mediana do tempo de espera.
Cheira-me, além disso, a aldrabice estatística: se 40 casos prioritários aguardam em média 50 dias, não sei como 700 casos (17 vezes e meia mais) passam a ter um tempo média de “apenas” 122 dias, ou seja, pouco mais do dobro (2,4 vezes mais).
Convenhamos que, consultado o site do SNS, concluo que tenho azar de viver na zona histórica da capital. Se o “meu hospital” fosse o Santa Maria, o tempo de espera seria de 92 dias em condição “normal” (tem, neste momento, 452 doentes aguardando consulta). Em condição “prioritária”, contudo, o tempo de espera é mais elevado do que nos Capuchos: 57 dias, em média para os 81 doentes.
Melhor estaria se fosse utente do serviço de Gastrenterologia do Hospital Amadora-Sintra: 11 casos “muito prioritários” com tempo médio de espera de 23 dias, 105 “prioritários” com 67 dias e 11 “normais” com 81 dias. Nada mau. Dentro dos parâmetros definidos por lei.
Idem para o Hospital Garcia de Orta: 10 casos “muito prioritários” com 24 dias de espera média; 30 casos “prioritários” com 51 dias e ainda 179 casos “normais” a aguardarem, em média, 93 dias.
Fui ver fora de Lisboa: por exemplo, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Os 11 casos “prioritários” têm um tempo de espera de 52 dias, enquanto as 881 pessoas com condição “normal” aguardam, em média, 200 dias. Ui!
Isto é uma roda da sorte!
No Porto, não se está muito melhor. No Hospital de São João, por exemplo, a Gastrenterologia tem 32 dias de espera para os 11 casos “muito prioritários”, 45 dias para os 94 casos “prioritários” e 141 dias para os 782 casos “normais”.
Busco entretanto ao calhas, sem critério definido. Vejamos o Hospital Distrital de Santarém: pasme-se também, pelo absurdo. Em terras escalabitanas, temos 34 pessoas em condição de “muito prioritário”, com “direito” a tempos de espera de 248 dias. Estranhamente, em grupo, estão estes mais mal servidos do que aqueles que são classificados com condição “prioritária” (235 dias de tempo médio de espera para os 37 doentes) e muito pior do que os que apresentam condição “normal” (73 pessoas esperam, em média, 149 dias pela consulta).
Sigo para o interior. Imaginemos que sou de Bragança. Azar: não há serviço de Gastrenterologia. Desço para a Guarda: há um serviço no Hospital Sousa Martins, mas nenhum dos doentes ali referenciados (seis “muito prioritários”, 107 “prioritários”, 94 “normais” e três sem atribuição) tem definido um tempo médio de espera. Deve ser quando calhar.
Já em Viseu, parece ser vantajoso ter ali doença desta especialidade: só há pacientes em condição “normal” (156) com tempo médio de espera de 53 dias. A coisa deve piorar, porém, quando distribuírem os 107 doentes que ainda não têm classificação de prioridade…
Em Castelo Branco, não está mal, tendo em conta as circunstâncias do país: 21 pessoas, todas classificadas em condição “normal”, têm um tempo de espera médio previsto de 49 dias.
Em Évora mostra outra situação sem nexo: 27 doentes “prioritários” têm tempos médios de espera (96 dias) superiores aos dos 153 doentes classificados como “normais” (85 dias)
Poderia continuar a análise, mas não pretendo fazer um tratamento exaustivo sobre o estado da Gastrenterologia no SNS. Basta estes para exemplo. Para mostrar como não há lógica, não há política de saúde pública, enquanto o Estado – ou melhor dizendo, o Governo – olha com sobranceria para os problemas que fogem do mediatismo do momento. Para aquilo que não é prioridade mediática, deixa andar…
Antes da pandemia, a Gastrenterologia tinha já mais de um terço das consultas a superar os tempos máximos de resposta garantidos (TMRG). A situação terá, certamente, piorado desde a pandemia, e muito; tanto assim que estamos em finais de 2022 e nem sequer dados sobre a situação de 2020 foram já disponibilizados pela Entidade Reguladora da Saúde.
Sabe-se bem que o tempo de intervenção, em doenças desta especialidade, entre os primeiros sintomas e um diagnóstico, é muitas vezes vital; determina se se vive ou não.
Ora, também se sabe que, durante dois anos, o Estado – leia-se, o Governo – não teve mãos para despejar rios de dinheiro para uma doença (covid-19) que, entretanto, se tornou endémica, matando, segundo dados oficiais, um pouco mais de 25 mil pessoas, não se sabendo bem quantos com e quantos por causa do SARS-CoV-2. Só em vacinas foram 660 milhões de euros; de testes e outros materiais e medicamentos, nem se fala.
Porém, para outro tipo de doenças, de que as do aparelho digestivo são um bom exemplo, o Estado – leia-se, o Governo – deixou degradar os serviços públicos para o nível da indigência. E isto sabendo-se, por exemplo, que os cancros digestivos são responsáveis por cerca de 10 mil mortes por ano, que a dispepsia afecta entre 20 e 40% da população, a doença do refluxo gastro-esofágico 35%, a infecção por Helicobacter pylori entre 60% e 70%, e a síndrome do intestino irritável aproxima-se de um milhão de casos.
E, na verdade, nem se pode dizer que, globalmente, haja falta de médicos desta especialidade. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, Portugal tinha 634 gastroenterologistas em 2021, dos quais 253 da Área Metropolitana de Lisboa e 191 no Norte e 130 no Centro. Num relatório de 2011, a Administração Central do Sistema de Saúde considerava que o rácio para os serviços de Gastrenterologia deveria ser de 3,0 médicos por 100.000 habitantes. Significa que, actualmente, temos assim mais do dobro das supostas necessidades.
Mas, então, onde estão esses médicos se os tempos de espera no SNS são, no mínimo, desesperantes?
Estarão no privado, onde, obviamente, eu terei de recorrer?
Estaremos a sofrer os efeitos de (mais) uma teia de interesses, que agrada ao Governo, estando os políticos impavidamente a assistir à propositada degradação do SNS até níveis catastróficos, de sorte que, quem tem algumas posses e/ou preza a vida, acaba por optar por médicos em hospitais privados?
Que se anda afinal a passar no país que canta hosanas, batendo no peito, ao SNS, mas que, pela calada, apaparica as empresas privadas que não param de seduzir médicos, desviando-os do sector público?
Perguntas pertinentes, mas que não retiram o cerne à (minha) questão interna: ando eu com prisão de ventre e o Governo a cagar para nós…
E a deixar que Portugal se transforme num país “onde o fedor, e a trampa habita”, como o soneto oitocentista dizia sobre o “sombrio palácio do alcatreiro”.